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Terça-feira,
23/2/2016
Ruy Proença: poesia em zona de confronto
Jardel Dias Cavalcanti
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Após a modernidade a poesia conseguiu unir num mesmo corpo criativo dois elementos que andavam separados: a autoconsciência do fazer poético (o “quis fazer ao invés do quis dizer alguma coisa”, de Valéry) e a reflexão, interesse e/ou rejeição do poeta pelo mundo.
MODERNIDADE:
Baudelaire fez um livro moral, criando poemas como flores maléficas que resultavam de sua ojeriza ao mundo em que vivia. A modernidade para o poeta não era tão positiva quanto faz parecer as suas análises críticas da arte moderna. Rimbaud criou iluminuras brilhantes, mas sem deixar de rebaixar a poesia à uma irmã mais pobre, a prosa-poética (que ele iluminou como ninguém). Em Rimbaud, “o esfacelamento da sintaxe e a dissipação da imagem são respostas adequadas de uma consciência de criação às voltas com as inadequações de relacionamento entre poeta e sociedade” (João Alexandre Barbosa).
Eliot mergulhou seu sofisticado instrumental poético num desalento criado pela sua oposição aristocrática à terra desolada, entendida como esterilidade e falência da cultura. Segundo Malcolm Bradbbury, Ezra Pound sintetizava, dentro desta mesma tradição, a visão ambígua da criação de toda a arte moderna: uma desconfiança em relação ao mundo moderno e ao sentido para o qual ele caminhava e, ao mesmo tempo, um compromisso por criar uma nova poesia com o modernismo.
APÓS A MODERNIDADE
Todo poeta hoje sabe que a linguagem comunica sentidos que estão além do fato semântico-mimético. E no caso da poesia contemporânea, a autoconsciência da crise do dizer, da linguagem, é parte atuante do próprio fazer poético. Se a experiência concreta da realidade se internalizou na poesia, é aquela realidade que as formas possíveis do poema vão permitindo ler por entre as execuções tangíveis da linguagem (em crise) da poesia. (J. A. Barbosa).
Não existe, por isso, transparência imediata entre o real e o próprio poema. O espaço da linguagem não oferece um sentido unívoco ao leitor, pois há o obscurecimento criado nas relações entre imagens e referentes circunstanciais. O poeta está atento ao fato de que há um limite para a designação da realidade e que o espaço do poema é onde se dá também a crise da existência da poesia, que é sua oposição permanente à realidade. Aliás, não era outra coisa que desejava Adorno, quando dizia que a estética e o social devem ser mantidos num estado de tensão irreconciliável.
CAÇAMBAS, DE RUY PROENÇA
O poeta Ruy Proença acaba de lançar pela Editora 34 seu sexto livro de poesia: "Caçambas". O livro divide-se em duas seções, sendo a primeira “Rádio de Galena” e a segunda “Singular coletivo”, com aproximadamente 40 poemas em cada uma das seções.
Na apresentação dessa resenha, chamamos a atenção para o fato da poesia após a modernidade vincular experiência de criação e relação com o mundo. É o que é a base dos poemas de Ruy Proença. A própria epígrafe do livro, onde aparece a frase “porque eu não tenho nada, a cidade não é minha”, já indica a inadequação do poeta ao seu ambiente. O poema, nesse caso, pode aparecer como uma espécie de rádio de galena, o mais simples (também precário?) instrumento de captação das notícias relativas à vida em sociedade. No entanto, elas estão ali, provocando a erupção dos poemas.
O vibrante poema “A noite na coleira”, por exemplo, conjuga a experiência social e alegoriza a condição do próprio poeta, fazendo daquela que seria uma simples denúncia de uma realidade estúpida a possibilidade de uma reflexão mais aberta da própria condição humana (“posso dizer eu?).
A NOITE NA COLEIRA
sou
da cor do asfalto/
da noite
noite antiquíssima
terei quinze?
não sei falar
não sei pensar?
obscuro
cuspo
eu
(posso dizer eu?)
não tenho pai
não sei de mãe/ avó não quer
não tenho teto/ certidão/ cordão
eu/nu
preso
ao poste
pelo pescoço
uma tranca
de bicicleta/ a coleira
de ferro
doem
estrelas/ vergonha
tatuadas
na carne
para mim
vida e sol
se põem
na contramão
sou
a própria noite
no pelourinho
A forma do poema se faz como flashes quebrados diante da realidade. De uma observação interna do personagem, a realidade externa se expõe/explode em seu significado. O leitor do poema passeia por essa vida, dentro de uma sintaxe que vai se recortando/quebrando, como se aquela história pessoal tivesse que se anunciar aos poucos, mas de uma forma que não consegue parar em pé. O que se revela nessas pausas tensas é o anúncio do desfecho trágico da noite histórica que ressalta o antigo pelourinho em plena praça pública de nossa história presente.
A memória revisitada, em um poema como “Baú de família”, que abre o livro, faz-se também a partir de recortes de pequenos elementos (dentes, mãos, uniformes, faces rosadas) que fazem o passado se reavivar num registro da história recuperado, apesar da obscuridade do túnel do tempo.
O tema da cidade percorre de várias formas os poemas de Ruy Proença. A tensão que se estabelece não deixa margem para admirações postais, mesmo quando a cidade é imaginária. “Cidades ocultas” é um poema que não nos deixa relaxar, dado o perigo da “contramão” e a situação da vida: “vida breve/ combustível/ na reserva// meus olhos vagam// pendurados/ em duplo anzol”.
Na série de poemas da seção “Singular coletivo” a ambivalência dos termos aplica-se a cada poema revelando >in extremis a incompatibilidade entre cidade e poeta. Em poemas como “Estação” e “Solidários”, revela-se mesmo o confronto físico entre a máquina e o homem (“contra/ o comboio/ de minhas/ vértebras”) e homem e homem (“carne: matéria/ resistente/ escorada/ em barras/ de ossos”). O resultado é a própria desumanização: “sem saber/ se ainda tenho/ braço/ perna (...) sem saber/ se ainda sou eu”.
A existência da poesia, essa antena atenta ao entorno e ao interno de si mesma, vai se fazendo em “Caçambas” no risco dos entre-cortes sintáticos que fazem do mundo o perigo constante e do próprio poeta uma espécie de esquizo-mulambo-autista-adicto. Nesse sentido, vale atentar para poemas como o belíssimo “Acidente” e o auto-referente-irônico “Poeta?”. E mesmo em “Febre” uma caída se anuncia: “mesmo parada/ a esbelta bicicleta/ tinha ares de ícaro”.
Em “Acidente” o que resta é um leque encharcado (de sangue?), uma possibilidade imaginária de ser borboleta, no entanto, sem a mínima possibilidade mais de voo. Se aqui está a alegoria da própria poesia dentro do mundo contemporâneo, que acione-se o sinal de alerta! E que Ruy Proença seja lido com mais atenção.
ACIDENTE
um leque
aberto, encharcado
grudado de mau jeito
no chão
uma asa
de borboleta
sem borboleta
(ou pétala)
pisada
um esqueleto
de vento
sem a mínima palpitação
de voo
Jardel Dias Cavalcanti
Londrina,
23/2/2016
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