Logo nos primeiros dias de 2016, recebi uma proposta inédita em minha carreira. A produtora de um cantor do Nordeste me convidou para ser o roteirista dos shows dele. O acerto acabou não acontecendo, devido a uma questão pessoal do artista, mas me fez pensar (pela milésima vez) como é curioso que num país tão musical quanto o Brasil esta não seja uma carreira incluída habitualmente nos planos de profissionais das áreas de Artes e Comunicação. Talvez pela falta de projeção que a categoria acaba tendo - pense em todos os shows que você já viu. Ou então lembre do show que você mais gostou de assistir, e que está em sua cabeça até hoje como se fosse um filme. Pois bem, alguém em algum momento pensou que músicas iriam entrar nele, em que ordem etc. Você saberia dizer quem fez isso? Não? Não se preocupe, você não está só! Esta função, como todas ligadas a bastidores da produção artística, raramente é citada com destaque.
Há casos em que artistas ou bandas muito conhecidos pedem que seus fãs mandem pelas redes sociais sugestões de músicas a serem incluídas no show, mas na maioria das vezes o roteiro do espetáculo é definido pelo próprio artista, junto com seu produtor, por vezes o diretor musical é chamado a opinar também. Pode acontecer, porém, de o artista chamar alguém (que já integre, ou não, a sua equipe) para escrever o roteiro do show - lembrando que nem sempre um show é apenas uma coletânea de canções, há artistas, a exemplo de Maria Bethânia, que recitam poesias entre uma música e outra. No período em que os shows de Roberto Carlos eram produzidos pela dupla Mièle e Bôscoli, cabia a este último - o jornalista e compositor Ronaldo Bôscoli - escrever os textos que Roberto declamava eventualmente.
O mais famoso caso de show escrito por alguém de fora da equipe dos artistas é Bons Tempos, Hein?, que Millôr Fernandes roteirizou em 1979 a convite do quarteto vocal MPB-4. Millôr também desenhou a capa do LP pela Polygram. A mesma arte foi aproveitada ainda como capa do livro que foi lançado pela editora gaúcha L&PM (dentro da coleção Teatro de Millôr Fernandes!!!), contendo o roteiro completo do show, incluindo as letras de músicas como "Se meu time não fosse o campeão" (Gonzaguinha), "Tropicália" (Caetano Veloso) e "Cálice" (Chico Buarque - Gilberto Gil). A edição deste livro pode ser considerada algo surpreendente, afinal, desconheço outro roteiro de show que tenha virado livro!
Para a minha geração (nascida na década de 1970), estes shows reunindo músicas, poesias e textos parecem ter sempre existido, mas na verdade não são tão antigos assim. Mesmo que se possa ver nos espetáculos modernos ecos do antigo teatro de revista (peças cômicas surgidas no século 19 reunindo esquetes humorísticos e sucessos musicais do momento) - e seus sucessores, como os shows de cassino e os shows de boate -, os chamados shows de teatro viram rotina no país entre o final dos anos 60 e começo dos 70. Isto devido a N fatores, o principal é que, até 1964, o formato dominante de disco no mercado era o 78rpm, com apenas duas músicas. Os grandes nomes da primeira metade do século - Francisco Alves, Orlando Silva, Carmen Miranda, Sílvio Caldas etc. -, moravam todos no Rio de Janeiro, que até 1960 era a capital federal. Mas quando eles cantavam nos teatros do Rio, não era com shows solo, que é a concepção que temos hoje. Ou eram shows coletivos, com inúmeros artistas; ou eram programas de auditório transmitidos ao vivo pelo rádio; ou eram participações em espetáculos de teatro de revista.
Quando estes artistas de fama nacional viajavam para cantar em outros estados, na maioria das vezes era para atuar em programas de auditório (as grandes emisssoras tinham orquestras próprias, geralmente as partituras eram enviadas com antecedência, então apenas o cantor ou a cantora viajavam, diferentemente de hoje em que um artista monta sua banda e viaja sempre com ela). Nas turnês para shows em teatros de outros estados, mesmo um artista de grande fama como Francisco Alves raramente se aventurava sozinho, era comum chamar colegas como Mário Reis, Carmen Miranda ou Noel Rosa.
Já em meados da década de 60, o panorama era bem diverso. As rádios não tinham mais orquestras; o LP se firmara como formato padrão do mercado; o teatro de revista, cujos atores foram recrutados pela televisão, praticamente desapareceu. Outro fator veio contribuir para a aproximação entre artistas da música e os palcos dos teatros: a censura da ditadura militar que chegou ao poder em 1964. Do dia para a noite, peças já ensaiadas e autorizadas a estrear - ou mesmo já estreadas! - podiam ser simplesmente proibidas, e era comum que fossem substituídas por apresentações musicais, naturalmente, ao menos no princípio, improvisadas.
Mas ainda em 1964 estreou aquele que é um marco na história dos shows brasileiros: Opinião, com João do Vale, Zé Kéti e Nara Leão (substituída depois por Maria Bethânia), com roteiro de Armando Costa, Oduvaldo Vianna Filho e Paulo Pontes e direção de Augusto Boal, no Teatro Opinião (Rio). Em 1966, Bethânia voltou ao mesmo palco, ao lado de Gilberto Gil e ninguém menos que Vinicius de Moraes, com o show Pois É, roteirizado pelo trio José Carlos Capinam, Torquato Neto e Caetano Veloso, tendo direção musical de Francis Hime e direção geral de Nelson Xavier. No mesmo ano, o Teatro de Arena (São Paulo) produziu o show Arena Canta Bahia, cujo elenco hoje custaria milhões para ser reunido: Maria Bethânia, Gilberto Gil, Gal Costa, Caetano Veloso, Pitti e Tom Zé, com direção de Augusto Boal. Ou seja, ainda predominava a ideia do show coletivo.
O modelo consagrado na atualidade, do show cujo repertório é estruturado em um disco recém-lançado pelo artista, começa a se firmar em 1970 com a estreia da primeira temporada de Roberto Carlos no Canecão (Rio) - foi aí que ele passou a trabalhar com Mièle & Bôscoli - e atinge um ponto de excelência com a extensa temporada de Falso Brilhante, de Elis Regina, no Teatro Bandeirantes (Sâo Paulo) - foram 257 apresentações de dezembro de 1975 a fevereiro de de 1977, sim, 15 meses em cartaz!!! Um marco histórico, e algo impensável nos dias de hoje. Com roteiro da própria Elis e de Cesar Camargo Mariano, o show contava com atores, corpo de baile e a direção de Myriam Muniz. Pelo gigantismo dos elementos em cena, Falso Brilhante não pôde cumprir um dos requisitos básicos de um show na contemporaneidade, que é sair em turnê nacional ou mesmo internacional - foi em Amsterdam, Holanda, que Caetano e Gil estrearam seu show Dois Amigos, Um Século de Música, em junho de 2015, dois meses antes de sua primeira apresentação brasileira, em São Paulo.
Parte dessa história era relatada no prefácio da surpreendente edição com o roteiro de Bons Tempos, Hein?, o livro que me levou a pensar que, de certo modo, um roteiro de show tem muito em comum com uma peça de teatro (sem falar que me parece evidente que, não raro, o intérprete musical adota recursos cênicos comuns a atores - gestos, expressões faciais - para reforçar a mensagem da letra que está cantando). Pensando nisso, eu, que já escrevera três peças teatrais entre 1996 e 2002 (todas inéditas), fiz dois roteiros para shows. O primeiro, escrito em 2009, é uma reunião de músicas que falam sobre o amor (não necessariamente canções românticas), intitulado O Amor é a Coisa mais Linda que Existe entre Nós. O ano seguinte, 2010, foi de muitas homenagens a Vinicius de Moraes, devido à passagem dos 30 anos de seu falecimento; também fiz minha parte, criando o roteiro do show E Por Falar em Vinicius. Adotei para ambos uma mesma estrutura, na qual a sucessão das letras das diversas canções vai formando uma história, como se fosse um filme musical ou uma ópera.
Estes dois roteiros seguem absolutamente inéditos (bem como um outro que fiz em 2009 de parceria com cantora paraense Juliana Sinimbú para o show que se chamaria Artigo que Não se Imita: Juliana Sinimbú Canta Noel Rosa). Cheguei a trabalhar em Belém como produtor artístico de algumas cantoras (inclusive dirigi shows de Nanna Reis, em 2010, e Tábita Veloso, em 2011), mas por um motivo ou outro não chegamos a mexer nestes roteiros. Na verdade, eu já nem pensava no assunto, quando a sondagem recebida no começo do ano me trouxe à mente tudo o que aqui está dito.
Vivemos uma época em que o repertório de antigos discos é revisitado, seja pelo próprio artista - João Donato fez, em 2014, os shows que não aconteceram em 1973, para o lançamento de seu LP Quem é Quem -, seja por outros - na Virada Cultural de São Paulo, também em 2014, Otto interpretou os sambas do LP Canta, Canta, Minha Gente, lançado por Martinho da Vila quarenta anos antes. Curiosamente, não vejo movimento algum para remontar shows desse período áureo dos anos 70 em que, a meu ver, o show era uma expressão artística diferenciada em relação ao disco, pelos elementos citados no breve histórico acima. Sem contar que havia atistas como o gaúcho Carlinhos Hartlieb, que fez uma série de shows memoráveis em Porto Alegre entre 1972 e 1982, mas que só deixou um disco, Risco no Céu, lançado postumamente; quantos outros casos como este não terão havido pelo Brasil, de um artista ser mais de show do que de disco?
Enfim, talvez esse resgate de shows seja algo mais difícil, devido à quase inexistência de roteiros conservados que estejam disponíveis ao público (por favor, se eu estiver aqui dizendo uma grande bobagem, me corrijam!!!). Mas talvez chegue um tempo em que, assim como grupos teatrais de todo o Brasil montam, às vezes simultaneamente, peças de nossos grandes dramaturgos como Ariano Suassuna, Nelson Rodrigues e Dias Gomes (isso sem falar nas inúmeras montagens de textos de William Shakespeare o tempo todo pelo mundo), um mesmo roteiro de show possa estar sendo produzido em várias cidades país afora, com o devido destaque para seu roteirista. Sonhar não custa nada, como já cantou na Sapucaí em 1992 minha escola do coração, a Mocidade Independente de Padre Miguel :)