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Terça-feira,
5/4/2016
O titânico Anselm Kiefer no Centre Pompidou
Jardel Dias Cavalcanti
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>Dedicado ao Ronald Polito, na ocasião do seu aniversário
O Centre Pompidou, em Paris, está com uma esplêndida exposição retrospectiva da carreira artística de Anselm Kiefer, oferecendo ao espectador um passeio por nada menos que 150 de suas obras. A exposição teve seu início em 16 de dezembro de 2015 e irá até 18 de abril de 2016.
A obra de Kiefer é arrebatadora, nos levando a crer que estamos diante do mais fulminante artista da contemporaneidade. Todo artista que se colocar ao seu lado será visto como uma pulga, essa é a sensação que a exposição nos transmite.
Em 1969, Kiefer irrompeu na cena artística alemã com uma série de obras controversas, visando reavivar a história da Segunda Guerra mundial e desfazer a amnésia coletiva que pesava sobre a Alemanha. Em seguida, a obra prolífica de Kiefer é marcada pelo selo da desmesura, tanto por sua monumentalidade, pela força de sua materialidade, quanto pela infinita riqueza das fontes que ela possui, usadas para investigar o passado e a memória, com indicações do sentido do presente.
É uma imersão nesse universo titânico e eminentemente reflexivo que propõe a exposição do Centre Pompidou. Apresentada de forma cronológica, ela revela a tentativa obsessiva do artista, nascido em 1945, de elaborar uma nova linguagem, poética e catártica, mergulhada na cultura germânica, na história universal, plena de pensamentos místicos e filosóficos. Kiefer convive com poetas, pensadores e escritores (Genet, Celan, Heidegger, Benjamin etc), usando suas citações como elo entre o tempo passado e o presente.
A poética das suas ruínas é construída com uma pintura que usa tinta, argila, cinzas à base de plantas e chumbo, material alquímico por excelência, que reflete a melancolia no coração do seu processo criativo.
Um dos principais poetas que influenciaram Kiefer foi Paul Celan, escritor judeu sobrevivente dos campos nazistas de extermínio. Na sua obra “Für Paul Celan: Aschenblume” (Para Paul Celan: flor de cinzas), ele faz uso de matérias perturbadoras no contexto da obra, desde trechos de poemas de Celan até cinza, palha e livros queimados. Poesia e palavras de Paul Celan assombram o trabalho de Kiefer. A citação, onipresente no trabalho do artista, se torna o instrumento da memória, unindo passado e presente. A paisagem de cor cinza com os livros carbonizados faz eco na sonoridade dos poemas de Celan, exigindo o repensar a língua alemã e o sentido da cultura após os campos de concentração. A previsão de Heinrich Heine, poeta do século 19, também ressoa gravemente na obra: "Onde se queimam livros, acabam por se queimar pessoas".
O que Kiefer propõe ao espectador de “Für Paul Celan” é que ele se defronte sensorialmente com a história a partir da monumentalidade da obra e do cheiro forte das cinzas de livros e palha queimados, pois o que o artista deseja é fazer uma sondagem em profundidade na espessura da história.
Os componentes queimados presentes nesta obra (e em outras), e que invadem a sala de exposição penetrando o pulmão dos espectadores, os força, no tempo presente, a estar sensorialmente nos campos de extermínio da história, mergulhando-os na paisagem de morte e desolação que se perdeu na história (virou informação), mas que é retomado em forma de uma obra de arte como memória viva e perturbadora.
Ruína, morte e destruição não são elementos apenas do passado. Kiefer intui o presente como lugar também da devastação. E uma das obras significativas dessa exposição, nesse sentido, é a série “Lilith”. Baseada na figura mitológica da primeira mulher de Adão, protetora das cidades decaídas, em ruínas, sem futuro, também representa a figura do mal que toma conta do mundo.
A série foi inspirada num sobrevoo que Kiefer fez sobre a cidade de São Paulo, e pode servir como a metáfora das ruínas que estão reservadas à vida nas grandes metrópoles. Nesse sentido, o artista aproxima realidades históricas distantes, fazendo-as retornarem na forma de imagens como um espectro do holocausto redivivo no contexto da contemporaneidade. O cenário de fumaça e poluição que mergulha a metrópole numa indefinição total remete às obras sobre a devastação da guerra. Dos extermínios do dia a dia nas grandes metrópoles e a desumanização do homem e o rumo da humanidade em direção à devastação da natureza e sua referência aos campos de guerra, estamos numa mesma clave de desolação.
O que fica em obras monumentais como essas de Kiefer, e que são ruínas também monumentais, é a desesperança, talvez, na própria possibilidade da arte em poder produzir uma consciência feliz. Ao contrário, depois de uma exposição como essa no Centre Pompidou, todos nossos nervos são ativados, nossos músculos ficam como que desgastados: caímos em ruínas, frangalhos de nós mesmos. Estamos diante da ideia da impossibilidade da arte? Ou de sua essência, pós-holocausto, ter se convertido numa terra estéril? Será que a ideia de uma deusa tutelar e protetora do mundo profano – Lilith – seria um auto-engano interpretativo numa obra que transforma pesadas massas de tinta em cinza queimada?
A presença fantasmagórica da cidade, de seus personagens (quase em sobrevoo como o anjo da história de Klee/Walter Benjamin)- feixes de cabelo, vestimentas vazias – não seriam a descrença nesse mesmo anjo da história que redimiria o passado no presente? A possível correspondência entre Kiefer e Benjamin não me parece de mão única. Kiefer não tem em si a fé judaica nem a crença positiva do marxismo, tal como era o caso do filósofo da escola de Frankfurt.
As referências possíveis dentro das obras de Kiefer são mais assombrações do que certezas claras para o espectador. Não são pistas, ao contrário, são elementos perturbadores causados pela matéria plástica e signos verbais que nos fazem mergulhar na desolação das terras arrasadas. Fornos crematórios, florestas desérticas e incendiadas, cidades em ruínas, estradas destruídas e que levam nossa vista para o nada, livros incendiados, natureza seca... tudo remete à destruição, à morte e ao desencanto.
De todo esse horror, o que sobra? Podemos invocar as palavras do poeta Paul Celan para uma possível resposta: "Acessível, próxima e não-perdida permaneceu no meio das perdas somente isso: a linguagem".
Se o artista é a antena da raça, Kiefer está adiantando a ideia de que estamos frente a um grande colapso, bem próximo, o da existência humana e da natureza como um todo. E só ele, me parece, tem dito isso de forma tão titânica.
Jardel Dias Cavalcanti
Londrina,
5/4/2016
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