COLUNAS
Sexta-feira,
8/4/2016
Literatura engajada
Marta Barcellos
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Filha da “revolução”, burguesa sem religião, geração coca-cola. Nascida pós-golpe de 1964, eu tinha tudo para ser a típica adolescente alienada da música da Legião Urbana (em disco lançado em 1984, no finalzinho da ditadura). Mas fui salva da desinformação – então alimentada pelo medo e pela censura – graças à biblioteca do meu pai, com quem morei dos 10 aos 15 anos.
Era apenas uma estante, mas ocupava toda a parede e se estendia até o teto. Com a empregada proibida de mexer nela, estava sempre repleta de poeira. Lembro-me de minhas primeiras leituras, romances “para conhecer o verdadeiro Brasil”: Jorge Amado, Érico Veríssimo, Graciliano Ramos. E das obras do chamado realismo mágico latino-americano, que meu pai me indicava quase como lição de casa: nelas, eu deveria procurar as explicações para o que “estava acontecendo”.
O que “estava acontecendo” tinha relação com os cochichos dele com os amigos, também professores, com os cartazes das peças de teatro que decoravam a sala, com as músicas estranhamente alegres do Chico Buarque (“apesar de você, amanhã há de ser...”), e com o fato de lermos o Jornal do Brasil – e não o Globo, como o vizinho nada confiável.
Privilegiada por crescer neste ambiente politizado, eu convivia com um vocabulário que – só depois perceberia – muita gente da minha geração ignorava: ditadura, tortura, censura, abertura (quantos sufixos de ação!), exílio, anistia. Sabia que “revolução” era o nome dado pelo “outro lado” ao golpe militar. Por sinal, o único vício de linguagem equivocado do qual fui vítima talvez tenha sido o de falar “golpe militar” (estranhando quando alguém mencionava a “revolução” de 64), e não nomear corretamente aquele episódio histórico: um golpe civil-militar (sucedido por um regime militar).
Palavras são poderosas. Como diz Roland Barthes, a língua “não é nem reacionária, nem progressista; ela é simplesmente fascista; pois o fascismo não é impedir de dizer, é obrigar a dizer.” Que o digam as aulas de Moral e Cívica, obrigatórias na escola.
Hoje, quando percebo – por causa do atual momento político – de que forma foi possível que o golpe de 1964 tenha recebido apoio de boa parte da população, reflito sobre o motivo de ter afastado a palavra “civil” do episódio que tanto me horrorizava. Sim, houve apoio da população. Sim, muitos eram “bem intencionados”.
Nunca houve, porém, um mea culpa da sociedade civil. Somente alguns poucos apoiadores do golpe se explicaram depois, alegando-se enganados, ou desinformados. Além disso, nada viram, nada sabiam.
Só que, graças à biblioteca do meu pai, acabei sabendo mais do que talvez fosse suportável para a minha idade. Depois dos romances lidos como alegorias do autoritarismo vigente (com a republicação das obras de José J. Veiga, recordei-me da impressão causada por Sombras de reis barbudos, por exemplo), surgiram, na estante empoeirada, livros bem mais explícitos. Foi assim que li Em busca do tesouro, da Alex Polari, O que é isso, companheiro?, de Fernando Gabeira, até chegar ao livro que passou a me dar pesadelos, Brasil: nunca mais.
Os relatos frios, precisos e detalhados da tortura e da repressão política, coletados em um projeto liderado por Dom Paulo Evaristo Arns, não me permitiam digerir o jantar sem esforço. Com frequência, me flagrava pensando na estratégia que adotaria caso fosse torturada. O quanto seria corajosa?
Muitos anos depois, fui informada de ter perdido meu tempo com literatura ruim: era tudo “apenas” literatura engajada. Sei não. Acho que essas leituras teriam sido bastante úteis para a formação de muita gente.
Marta Barcellos
Rio de Janeiro,
8/4/2016
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