COLUNAS
Sexta-feira,
13/5/2016
Abdominal terceirizado - a fronteira
Marta Barcellos
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Elias é um senhorzinho espontâneo. Sorridente, confiante, diz o que lhe passa pela cabeça. Uma vez sentou-se ao meu lado e puxou conversa sobre a matéria de capa da revista Veja. Se eu tinha visto a última do PT. Não, eu não tinha lido; não, eu não costumava acreditar na Veja, informei-o. Ele não chegou a ficar contrariado, acho até que gostou. Teria esfregado as mãos, se elas não estivessem agarradas ao apoio da bicicleta ergométrica.
- Você é daquelas que acreditam que as pessoas nascem boas? Pois saiba que é a competição que move a humanidade. É cada um por si.
Faltavam uns cinco minutos para chegar ao fim do meu treino, mas considerei encurtá-lo. Aliás, como ele havia feito com aquele diálogo: aparentemente, pulara várias falas que teriam sido necessárias, para poder chegar logo ao “desafio filosófico”, que considerava o cerne da questão.
Não me lembro de como saí da situação, mas o fato é que Elias continua a conversar comigo – ou com qualquer outro na academia que lhe der um mínimo de trela. Mesmo depois do impeachment, seu assunto preferido é fazer piadas sobre o PT. Deste nível:
- Sabe qual é a última do PT? Eles agora querem igualar os QIs (quociente de inteligência) de todo mundo. Se uma pessoa tiver QI zero e outra QI cem, as duas vão passar a ter QI 50.
Mas eu não estaria aqui dando tanto espaço para este senhorzinho, se não fosse por um desses “diálogos-piada” em especial, que ouvi entre ele e Carol.
Primeiro, apresentemos Carol. Ela é, sobretudo, forte. Forte mesmo, não se trata de um eufemismo para gorda. Na verdade, tem um corpão, provavelmente por causa da pouca idade e dos pesos que levanta com braços, pernas e glúteos quando não está em seu turno na academia. Dos professores, é a única que não fica de conversa fiada com os alunos mais interessados em “fazer social” do quem em malhar. Os cabelos naturalmente lisos, compridos e castanhos estão sempre soltos, escorridos sobre a camiseta preta que a identifica, nas costas, em letras brancas, como “Profissional Ed.Física”.
Pois foi justamente quando estava ao lado de Carol, que Elias teve uma de suas ideias “engraçadas”. Como se estivesse cansado dos exercícios, e como é um sujeito que se acostumou a ser espontâneo, e como a sua espontaneidade é sempre muito bem recebida pelos amigos, Elias disse:
- Tive uma ideia. A gente poderia passar a terceirizar os exercícios físicos. Não seria ótimo? Eu terceirizo meus abdominais, você os faz para mim, e eu fico com os efeitos todos!
- Seria ótimo, se funcionasse – se limitou a responder Carol, com a seriedade de sempre.
Elias, claro, é um entusiasta de terceirização (isso posso afirmar, supondo que o assunto estaria naquele diálogo “pulado”, em benefício da produtividade, entre a matéria da Veja e teoria hobbesiana). O seu raciocínio é no mínimo curioso: para se evitar um esforço, hoje em dia é possível terceirizar quase tudo. Contrata-se, paga-se, distribui-se renda e trabalho – a partir desse contrato, é necessário ao contratante (QI cem?) apenas comandar as pessoas subordinadas (QI zero?). Os contratados cuidam da firma, as babás cuidam das crianças pequenas, os professores das crianças grandes, os passeadores dos cachorros, os médicos da saúde etc.
Mas aí entra o problema dos corpos. É possível “terceirizá-lo” apenas parcialmente - ao esteticista, ao massagista, ao cabeleireiro, ao fisioterapeuta, ao personal trainer. O Profissional Ed.Física pode acordar o dorminhoco em casa, arrastá-lo para correrem juntos no calçadão e ouvir sua conversa chata sobre o PT fingindo interesse. Mas quando o Profissional Ed.Física fizer quinhentos abdominais, com suor e determinação, a barriga tanquinho será só dele, não de Elias.
Elias gostaria de pagar para ter a juventude, a determinação e quem sabe os glúteos de Carol. Mas precisa se contentar que ela ria de suas piadas. Nem isso tem conseguido, coitado.
Marta Barcellos
Rio de Janeiro,
13/5/2016
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