COLUNAS
Terça-feira,
31/5/2016
Nos tempos de Street Fighter II
Luís Fernando Amâncio
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É cada vez mais difícil lembrar que, em um passado não tão distante, sobrevivíamos sem a internet. Se contar para uma criança que, na minha infância, era necessário consultar livros e enciclopédias para realizar um trabalho escolar, receberei de volta um olhar tão incrédulo que fará com que eu me sinta o Matusalém em pessoa. Já faz quase duas décadas desde que o último vendedor de Enciclopédias Barsa foi avistado...
Também é estranho relembrar que a internet um dia não foi banda larga. Não existia essa coisa mágica que, mal ligamos o computador, já estamos conectados. Tínhamos que baixar um discador, escutar aquele barulho da tentativa de conexão, torcer para ela vingar e, enfim, podíamos nos deleitar fazendo pesquisas no Cadê?, abrir um e-mail no BOL ou “teclar” pelo Bate-Papo do UOL. Isso quando não ocorria uma desconexão sumária, sem qualquer aviso prévio. Toda uma geração aprendeu a driblar o sono para poder descobrir a internet depois da meia-noite, quando a conexão era mais barata. Somos praticamente pré-históricos.
Para matar a saudade da conexão discada é só dar o play
Hoje, a realidade é outra. A internet está aí, mais forte do que nunca. Tão forte que já nem é exclusiva dos computadores. Um vício ao alcance da ponta dos dedos, fácil de ser cultivado. Tem gente que morre de sede, mas confere as redes sociais antes de procurar água. E possivelmente vai consultar o Google para saber onde encontrar água em casa.
Foi antes de toda essa revolução que Street Fighter II se tornou um fenômeno. O jogo, lançado em fevereiro de 1991, não foi o pioneiro dentre os jogos de luta – história que começou em 1976, com o jogo de boxe Heavyweight Champ, da Sega. E sequer foi o primeiro game da franquia, que chegou ao mundo em 1987, num obscuro jogo que poucos conheceram. Mas Street Fighter II foi um sucesso nos arcades e nos consoles, ajudando a alavancar as vendas do Super Nintendo e torná-lo o mais popular videogame da primeira metade dos anos 1990.
SF II foi fundamental na consolidação dos jogos de luta – esses que a gente enfrenta um adversário e, se vencer, “passa de fase”, ou seja, luta com o próximo inimigo. Um jogo de roteiro simples, pouca conversa e muita ação. De um modo geral, a molecada que estava jogando queria mesmo era aplicar “magia” nos adversários e “zerar” o game. Mas havia, sim, uma história, que seria reforçada e ampliada com produções em outras mídias e nas diversas sequências que seriam lançadas.
O jogo da Capcom fez sucesso por sua boa jogabilidade, pela qualidade gráfica superior aos jogos de luta anteriores, por seus personagens carismáticos e até mesmo por sua trilha sonora, que é bastante cativante. Mas um dos grandes atrativos do jogo, ao menos para mim, era a viagem pelo mundo que ele promovia. Seus lutadores estavam vinculados a um país e, muitas vezes, a um estereótipo. Assim, enfrentamos um lutador de sumô numa casa de banho japonesa, um praticante de ioga da Índia, um militar norteamericano, um fortão soviético numa fábrica, um boxeador em Las Vegas, um toureiro espanhol... No caso do Brasil, o lutador que nos representa é um monstro verde que luta numa aldeia na floresta amazônica, com uma cobra gigante ao fundo, inclusive. Uma visão bastante caricatural sobre o nosso país, convenhamos.
Panfleto japonês de divulgação do jogo
Ainda assim, Street Fighter II ajudou garotos obesos, desengonçados, raquíticos, a viajarem pelo mundo e descobrir países e artes marciais. Os melhores podiam, além de calejar os dedos, derrotar o maligno M. Bison e se tornar campeão do torneio. Eu não era desses, geralmente ficava empacado, curiosamente, na fase do brasileiro Blanka. Não havia fichas o suficiente para incrementar minhas escassas habilidades.
Hoje, esse atrativo de “viajar pelo mundo” não venderia um jogo. Através do Google, nosso oráculo mor, é possível ver imagens de qualquer rua específica do leste asiático. O conhecimento está aí, por todos os lados, até banalizado – uma busca simples lhe dá, em frações de segundos, informações certas, falsas, importantes e esdrúxulas. O chocolate Surpresa, com suas figurinhas de curiosidades, desapareceu não foi por acaso. Deve estar junto com os vendedores da Barsa em outro universo.
Ainda assim, posso testemunhar: era possível ser feliz antes da internet nos dizer, com sinônimos, antônimos e versões informais, o que é ser feliz. Às vezes o cartucho travava e a gente tinha que soprar, em alguns dias tínhamos que desligar a videogame porque era hora da mãe assistir novela. Mas não importava. A glória de vencer Vega, Sagat e os demais adversários nos animaria até o dia seguinte, quando a batalha continuaria.
Luís Fernando Amâncio
Belo Horizonte,
31/5/2016
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