COLUNAS
Sexta-feira,
15/7/2016
Quando (não) li Ana Cristina César
Ana Elisa Ribeiro
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Agora que a Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) terminou, já posso ficar mais à vontade? Tomara. É que eu queria contar da minha relação - quase nenhuma - com a poesia de Ana Cristina César, reeditada pela Companhia das Letras recentemente. Isso sem ofender ninguém, é claro.
Do acesso negado
Eu não tinha noção, mas não havia muito acesso à obra de Ana C., como carinhosamente a chamam. Não tenho, até hoje, qualquer intimidade com ela. E tinha menos ainda, naquela época.
Eram os anos 1980-90, eu vivia minha adolescência e adorava ler. Construía, não sem dificuldades, meu elenco de obras, de autores e mesmo meu cânone. Tentava descobrir uma literatura mais recente, apesar das omissões do currículo escolar. Fazia esforço também para descobrir que autores vivos publicavam e que livros novos circulavam, especialmente na poesia, que era meu maior encantamento na leitura.
Entre bibliotecas privadas, escolares e públicas, eu construía uma trilha de leitura, com mediação quase zero, mas muita vontade de encontrar interlocutores. Quando um livro me caía nas mãos, eu logo corria para achar um outro que a este estivesse ligado, de algum modo. Meu critério maior ainda era o próprio autor, que poderia me levar a outros livros dele mesmo, ou aos alheios, por acaso ali citados, mencionados, assinados nos prefácios e nas orelhas das obras (ah, como o paratexto é precioso).
Numa dessas, percorrendo os caminhos tortuosos fora do currículo e longe da sala de aula, topei com uma carreira de livros mais novos na biblioteca da escola. Eram os livros das listas de vestibular. Isso nem existe mais. Converteu-se em um silêncio a mais na construção das impossibilidades. Nem isso precisamos mais ler ou dar a ler. Bem, polêmicas à parte, descobri algo novo. Autores, obras com títulos interessantes, rostos em fotos recentes, editoras existentes, uma linguagem muito próxima. Nessa prateleira específica, conheci Rubem Fonseca e João Ubaldo Ribeiro, descobri Ricardo Aleixo (vivo e conterrâneo), Carlos Herculano Lopes (idem) e Ana Cristina. Um espanto!
O espanto da mulher escritora
Sim, foi um espanto. Eu me lembro da sensação estranha de tomar entre os dedos um livro vermelho, meio fino, chamado A teus pés. Virei, revirei, é isto mesmo: é uma moça que escreve estes versos. Versos! Até ali, sequer Cecília Meireles me parecia uma mulher. É que Cecília me chegara pela via da literatura infantil, o que não me deixava a mesma impressão que Ana C. deixaria. Eram e são lugares diferentes onde pousar nossas impressões. O jeito era outro, a imagem da escritora diferia muito. A aura, talvez. Ana C. era a primeiríssima mulher escritora que me parecia do mundo da literatura "adulta".
Que espanto! Que livro é este? Que título é este? Confesso ter estranhado, mas também ter desgostado um pouco. Passou pela minha cabeça algo de piegas, talvez. Mas vou levar, pensei. Peguei emprestado, levei para casa e me estranhei com aquele livro mil vezes, até devolvê-lo à biblioteca. Lido, completamente lido e relido, sem muitas anotações. Lembro de achar as frases soltas, uma névoa qualquer, uma frouxidão nos versos, como se o poema permanecesse inacabado. Não era minha preferida. Mas só era ela entre os nomes do meu elenco até ali. Devolvi, nunca mais peguei.
Anos depois
Ana C. nunca mais esteve na moda. Descobri, nem sei como, mais uns autores, mais uns livros, consegui comprar outros. O livro vermelho dela vivia em falta, mas ao menos existia em alguns lugares por causa de um vestibular. É claro. Hoje esse mecanismo me parece muito mais óbvio e infinitamente mais cínico também. Ana C. era apenas um livro difícil. Hoje é um livro de vitrine.
Custei muito a encontrar outras autoras. Lembro de achar Cláudia Roquette Pinto (e comprei o livro); lembro de ganhar um volume de Thais Guimarães (hoje uma amiga); lembro de contatar Leila Míccolis; lembro de ganhar Bagagem, de Adélia Prado, quando ela ainda não era uma escritora tão popular. Era uma mineira do interior, também listada nos vestibulares.
No romance, lembro de ler Rachel de Queiroz quase toda e de me espantar, de novo, com a existência de uma autora entre tantas possibilidades masculinas. E Clarice, em alguma aula de cursinho, de novo... o vestibular.
Afinal, o vestibular e sua lista de livros me salvou da omissão total, especialmente em termos de escritoras. E agora? Hoje eu morreria à míngua da literatura esgarçada que dão nas escolas.
Formando escritoras
Em que Ana C. me corrigiu a rota? Talvez ela tenha me empoderado um pouco. Eu pude concluir, não sem ousadia: sim, posso também. Principalmente porque não a guardei como minha preferida ou como uma autora de extrema qualidade. Isso nas impressões - deem licença - de uma adolescente ou quase adulta que lia muito. Achei que também poderia fazer meus versos e já os fazia. Mas achei que poderia mostrá-los, publicá-los em algum lugar. Um zine, um jornal, tudo impresso, àquela época. E foi o que tratei de conseguir.
Mas não apenas por ter lido Ana Cristina. Por ter lido muito, e muitos outros, e por ter descoberto que se poderia falhar ao escrever e ser gostado e odiado. E que se poderia ser menina no meio de tanto menino. E que eu poderia estar viva, isto é, para ser autora não é necessário morrer, embora Ana C. tivesse uma biografia complicada, nesse sentido.
Escrevi, publiquei. Lancei-me à roda da literatura feita por gente viva, em português. Quem lerá isto? Deve ser a pergunta fatal para qualquer autor. Ou talvez não, para os que não ligam a mínima. Há os que dão sorte; há os que não. E meti-me nisto.
Nunca mais pensei em Ana C. Não a colecionei, nem por respeito ao gênero. Não pensei mais em nada disso e nem achei que algo me impediria de ser uma delas. Ou um deles. Nunca mais topei com A teus pés, nunca mais o li. Só lembrava das impressões meio frias que havia me deixado. E até lastimava.
Até que comecei a ouvir dizer. Fui tomando uma consciência das dificuldades que eu jamais tivera antes. E acho que não tê-las me ajudou, de certa forma. Talvez eu tivesse desistido. Comecei a atribuir a certas perversidades o fato de me negarem a fala, a letra, a circulação. Como terá sido com elas?
Ana C. nunca esteve no meu cânone. E não estará só porque foi reeditada por grande editora ou porque, de repente, tratou-se de reacendê-la ou porque uma biografia surge ou porque, por mecanismos X e Y, é a homenageada do evento mais badalado das letras nacionais. Não mudarei de impressão por isso, mas é claro que tenho muito a pensar sobre tudo e sobre Ana C. e sobre a omissão do nome dela, dos livros, sobre as críticas e sobre o incômodo com sua obra.
Comprei Ana C. reeditada, faz tempo. Não porque a preferisse entre outras e outros, mas em respeito à leitura que fiz de sua obra décadas atrás. Mas comprei faz tempo. Assim como comprei Cacaso belamente reeditado. E também Chacal. Eu recolecionei minhas leituras. E a única impressão que continuo tendo é a de que Ana C. pode ter me empoderado, mesmo que seus versos não me tenham conquistado.
Das comparações
Mas nunca consegui me desvencilhar de Ana C. Sabem por quê? Porque mesmo a tendo lido quase nada e mesmo nunca a tendo relido e nem sequer me sentindo próxima dela, era com ela que comparavam o que eu escrevia. E isso me incomodava.
Não me enraivecia. Não era para tanto. Mas era injusto, era fácil; era óbvio, mas era inverdadeiro. Era algo assim: quando um leitor (geralmente homem) queria ler meus textos e resenhar, de certa forma, minha poesia, ele logo vinha com algum chamado ancestral. E como encontrava muita dificuldade em enunciar qualquer coisa sobre aquela minha voz poética (que certamente não se parecia com outras), quase nada encontrava no horizonte das escritoras. E no da poesia "para adultos". E daí logo sacava Ana Cristina César, mesmo que em nada meus versos se parecessem com os dela. Era ela a única possibilidade, ou das poucas. E eu pensava: mas que falta do que dizer, meu Deus!
Nunca me identifiquei com ela. Nunca me senti leitora e mimetizadora dela. Mal lembrava de seus textos. No entanto, era considerada uma espécie de sua herdeira. Sim, certamente, por sermos mulheres nesta seara. Ou neste Saara.
Na falta de referências, "vai tu mermo", não é isso? Quem mais? Quantas mais? Mesmo tão deslidas as outras, com quem eu poderia me parecer? E havia outros episódios análogos: quando fui vocalista de banda de rock - e cantava grave como um rapaz -, só conseguiam me perguntar se minha influência era a Janis Joplin. Na falta de outra... Aquilo só me trazia mais espanto - um espanto ingênuo - sobre a escassez das mulheres nesses campos. Espanto! Se eu não ouvia Janis, não curtia Janis, não sabia quase nada dela e achava aquela voz chata!
Foi longo e tortuoso o caminho para descobrir Nina Simone, para achar Billie, para comprar uns discos da Ella. Muito custo para tudo. E para desvendar a vida difícil que essas moças costumam ter. Muito diferentes da minha, mas tão herdeiras, ainda, afinal.
Não é para ofender, não é para desmerecer ninguém que eu digo que não me sinto parte de uma dinastia parca e meio efêmera de moças poetas. Não é. Ana C. me empoderou, talvez. Não foi sem espanto que tive contato com a obra dela. Mas não foi amor, não foi vontade de escrever daquele jeito meio vago, meio inacabado. Eu queria aprender um outro jeito, sabendo que poderia. E posso.
Da próxima vez, tomara que encontrem comparação mais fácil, sem forçar tanto a barra no enquadramento das "poetisas". Em vinte anos, acho que a missão dos resenhistas será bem mais fácil e bem menos imprecisa, com muito mais mulheres para citar, muito mais escritoras em listas bacanas, livros para ler e genealogias para fazer. Só falta nos lermos mais, digo, de verdade.
Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte,
15/7/2016
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