Bonito de ver o espetáculo “A Última Dança”, no pequeno teatro Viga, em São Paulo, que fica em cartaz até o dia 15 de agosto. As cadeiras desconfortáveis e o cheiro de plástico queimado – intencional, acredito – fazem nosso corpo querer sair dali. Em contraposição, a beleza dos movimentos da atriz e a estranha delicadeza das máquinas espalhadas pelo palco nos fazem ficar. Nesse cabo de guerra, vamos aos poucos tomando consciência de estarmos lá, num processo semelhante ao que passou Simone Weil, cujos escritos e experiência inspiram a peça.
A peça faz a gente querer saber mais sobre ela, suas idéias, seu tempo, sua vida. Sobre seu irmão André Weil, um matemático brilhante que chegou a dar aulas na USP, ao final da guerra. Mas “a última dança” consegue evocar esse mal estar sublime que parece ser um dos pontos centrais do pensamento – e da vida – de Simone Weil.
Filósofa, professora e erudita, Weil voluntariamente se emprega em fábricas nos arredores de Paris nos anos 1930, em busca de um conhecimento visceral das tribulações do operariado, por quem militava. O drama da vida de Weil é maior que essa experiência. Uma judia que encontra no cristianismo refúgio espiritual; uma mulher brilhante que, rejeitando tanto a “carreira” feminina quanto a intelectual, se lança no ativismo político; uma refugiada que retorna ao palco de guerra como que por dever.
É na experiência fabril, entretanto, que a peça se firma, e isso é bom. O resto da biografia de Weil – ou melhor, da experiência – se revela nos gestos tão interessantes da atriz Natalia Gonsales, brigando com as máquinas, com o tempo, com as idéias. Natalia só não briga com a platéia. Resgatando outras figuras femininas e sua própria voz, com impressionante naturalidade, ela vai trazendo o público para a fábrica e para as reflexões da filósofa. Viramos um pouco Simone no processo, alcançando alguma graça, alguma ascensão, em meio ao ambiente degradado e cruel da produção industrial.
Se essa graça de Weil tem ressonâncias cristãs, de elevação espiritual em meio ao sofrimento, ou se pode ser uma espécie de aliá, elevação espiritual também, só que moderna, não temos como saber. Nessa aliá parodiada, Weil não sobe ao tablado para ler a Torá, a Bíblia, como na tradição judaica, mas responde à sirene da fábrica e se prostra diante da máquina, obra humana dos tempos daquele hoje. De um jeito ou outro, a graça é alcançada e a peça tem algo de sublime.
Tanto a peça como a vida de Weil estão repletas de entregas. Entrega aos operários, aos famintos, às vítimas da guerra, de modo visceral, talvez sem razão. Mas Weil não é só corpo, não pode ser apenas entrega. Não faria sentido o gesto que ignorasse todo o seu conhecimento e suas inquietações; é uma entrega com sabor de descoberta e não de martírio. É querer conhecer o outro, romper as barreiras que nos separam da experiência do outro que sente. Querer compreender a fábrica, a guerra, as revoluções, mas pelo seu avesso. Um saber feminino?
Reparei que a beleza da atriz não está nas partes do corpo, digamos, comercializáveis como nas pneumáticas mulheres de Aldous Huxley. Está nos gestos e nas mãos, esse nosso membro meio cerebral, meio corporal, exigido, maltratado, enfeitado, expressivo, frágil, forte. Sentimos pavor de que suas mãos se machuquem no processo fabril, como se perder a destreza fosse o pior perigo do mundo. Mãos que rezam e que escrevem.
E, se aquela entrega e sofrimento têm esse caráter também intelectual e especulativo, me dou o direito de ver a peça como um alerta mais que como expiação. Um alerta para os objetos que botamos na bimá, no altar de devoção. Que livros, que máquinas, que ideais, que objetivos, que organizações e que pessoas. O ano fabril de Weil pode ser interpretado, claro, como um ano em que ela se entrega à experiência do operário francês ainda desprotegido por leis trabalhistas adequadas. Pode ser interpretado como uma espécie de martírio. Já eu vi como a resposta a uma pergunta muito conceitual: o que acontece quando cultuamos a máquina como se ela fosse o Ensinamento, quando a colocamos no lugar da Torá?
Se a experiência de Weil é um modo corporal de fazer uma pergunta, como eu a entendo, a verdade é que sua pergunta, arcaica, permanece viva até hoje. Que acontece conosco quando botamos máquinas no altar? Ou ideais que lá não pertencem? Ou pessoas tão frágeis como nós? A peça, compartilhando a experiência física de Weil, repõe a pergunta, num jogo envolvente entre corpo e alma, razão e sentido, desejo e pavor.