Niilismo e iconoclastia em Thomas Bernhard | Bruno Garschagen | Digestivo Cultural

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Terça-feira, 26/2/2002
Niilismo e iconoclastia em Thomas Bernhard
Bruno Garschagen
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Thomas Bernhard (1931-1989) quis demolir a sociedade austríaca pela palavra com seu Extinção (Companhia das Letras, 476 páginas), lançado na Bienal do Livro de São Paulo de 2001, 14 anos depois de ter sido publicado na Alemanha.

Franz-Josef Murau, uma espécie de alter-ego do escritor e narrador do romance, inseriu na mesma ode caótica a família e a sociedade de católicos nacional-socialistas da qual os “seus” faziam parte na burguesa Wolfsegg.

A misantropia de Murau atingiu todo o país, que viu ruir nas primeiras décadas do século 20 o império austro-húngaro, que sediara, e constrangeu-se pela postura conivente, para dizer o mínimo, com a escalada nazista.

O ambiente onde se passa o romance é forjado pela forma densa e ágil, por mais contraditório que possa parecer, com que Bernhard articula a sintaxe. Num só parágrafo. Um ajuste de contas com a terra natal que o romancista, poeta e dramaturgo dizia amar. Mas o ódio pela estrutura do Estado e da Igreja ele fazia questão de esclarecer: “é tão terrível que só se pode odiá-las”, vociferou numa de suas raras entrevistas cujos trechos foram republicados pela revista Bravo!.

A partir das análises sobre o irmão (“um pobre idiota”), o pai (“fraco”), a mãe e as irmãs (“repulsivas”), o narrador vai desconstruindo sua relação afetiva e destruindo vínculos. Extingue cada um dos “seus” pela palavra, como para se preservar da decadência moral e intelectual que os envolvia.

Franz-Josef Murau odeia sua família. Não só a família. Odeia a burguesia austríaca pós-Segunda Guerra Mundial de onde saiu para auto-exilar-se em Roma. Anos mais tarde, com o mínimo contato com Wolfsegg, recebe um telegrama informando da morte dos pais e irmão. Acidente de carro — causa descoberta somente quando mais tarde chega à cidade e lê num jornal espalhado na cozinha. Convocação para o enterro. Sem choque, choro ou remorso. Indiferente à morte, fez e refez as malas algumas vezes analisando o que era mais interessante: caminhar de lá para cá com Gambetti (seu jovem aluno de filosofia) no Pincio, ou ter de ir à prefeitura e ao cemitério discutir com as irmãs as formalidades do enterro.

“Tentei fazer uma idéia das conseqüências que a morte de meus pais e a morte de meu irmão acarretariam, sem chegar a uma conclusão. Mas naturalmente tinha consciência do que exigia agora de mim a morte dessas três pessoas, as mais próximas de mim ao menos no papel: toda minha energia, toda minha força de vontade”.

A impessoalidade do tratamento é uma constante. Como se a personagem olhasse os “seus” como um estrangeiro, um sociólogo: friamente, sem um ralo de emoção a embaçar os olhos ferindo a análise crua. Impera sua verdade parcial. Como único homem descendente, herdeiro total das posses dos pais, a “fonte de seu sustento e de sua ruína moral”.

Na primeira metade de Extinção, Murau está fechado em suas reflexões enquanto decide se vai ou não ao enterro; se encara ou não um retorno ao desprezível. O interlocutor de seus pensamentos é Gambetti. Bernhard joga com as palavras magnificamente construindo orações que nos dá idéia clara de quando ocorrem os diálogos, quando pensamentos, quando ojeriza.

Os sentimentos são representados pelo vigor verbal do romancista, ora rasteira, ora pesada, ora intrincada, ora, ora. Há repetições de substantivos, adjetivos, expressões. Essa forma hiperbólica de linguagem resulta num efeito impactante e diverso na cabeça de cada leitor. Tal qual pinturas surrealistas.

A cada linha se constrói a imagem de homem amargurado; do homem reagindo à um ambiente desagradável; do homem sofrendo a reação de suas idéias e atitudes. A amargura só faz ressaltar a lucidez de Murau. Murau não só odeia como é odiado, como sempre foi odiado, pela família.

Nas divagações interiores durante o enterro transborda niilismo e iconoclastia — traços marcantes de Bernhard —, não necessariamente nessa mesma ordem. Às vezes até ao mesmo tempo. Cada parente e amigo da família instalado na casa para o cortejo fúnebre ganha de presente uma sinfonia caótica destrinchando as vísceras das atitudes e comportamentos. Curiosa é a maneira carinhosa com que Murau trata o amante de sua mãe, o arcebispo Spadolini — “uma figura absolutamente fascinante” —, com quem praticava “exercícios espirituais”.

Em Extinção, Bernhard conseguiu elaborar uma obra marcante. Até mais do que O Náufrago (Companhia das Letras, esgotado), Árvores abatidas (Rocco, 168 páginas), O sobrinho de Wittgenstein (Rocco, 124 páginas) e Perturbação (Rocco, 234 páginas), todos romances publicados no Brasil.

O radicalismo de sua visão (autor e narrador) não é cego. Move. Angustia. Sufoca. Estimula. Mesmo que não sugira algo novo em substituição. “Meu relato nada mais é a não ser uma extinção”. Quando, ao final do romance, Murau se vê às voltas com a herança dos pais pensa na melhor forma de resolver o “problema” e toma uma atitude surpreendente. Um monólogo de ódio e misantropia. Um grande livro para atormentar a existência.


Bruno Garschagen
Cachoeiro de Itapemirim, 26/2/2002

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