COLUNAS
Quinta-feira,
18/8/2016
Meu querido mendigo
Elisa Andrade Buzzo
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De onde vêm essas roupas, não sei, e provavelmente são de segunda mão. Mas a riqueza de combinações que produz, com o pouco que dispõe, assim como a inventividade, são surpreendentes. O mundo da alta moda já se inspirou, sobretudo para a moda masculina, nas composições e sobreposições do vestuário de moradores de rua. Meu mendigo fashion vai além com seu armário-cápsula, ele mesmo servindo como criador e modelo. E ainda, as suas combinações não são arte obscura e longínqua de passarela europeia, mas roupa do dia a dia, que aguenta a lida da rua. Seus looks são dignos de figurarem nas edições de The Sartorialist, de Scott Schuman.
No quesito acessórios, ele já esteve com um modelo de quepe azul-marinho, que cai muito bem aos seus olhos azuis-claros. Pensando bem agora, ao tentar relembrar algumas das vezes em que topei com ele, sempre está com a cabeça coberta. E ainda, me vem à mente uma vez em que, munido de um pequeno pente de tartaruga e espelhinho, afinava a cabeleira loira, de fios finos e ralos. Já vi seus pés pequenos de dedos grossos com havaianas, e também com incríveis sandálias de tira marrom que ele trançou como sandálias gladiadoras, antes do revival que esse modelo recebeu nos pezinhos femininos. Que mais esse senhor poderá inventar?
Em dias frios, já o vi como um guerreiro medieval. Uma blusa tipo moleton cor-de-rosa era seu gilet, o capacete de lã verde deixava apenas parte do rosto à mostra. No verão, seu papelão e jornal já carregou como se fossem arco e flecha de um arqueiro – enrolados e colocados de modo atravessado nas costas. A pele tão branca já adquirira um aspecto avermelhado. Seu corpo miúdo e largo já se equilibrou em camisa leve e calça social batida. E, este inverno, reencontrei-o. Vou contar.
Um dia parei de tomar ônibus num ponto em que pelas 7h da manhã ele se encontrava, com seu carrinho de puxar, superorganizado. Assim, não pude mais acompanhar sua evolução de vestuário. Mas numa noite de inverno, na avenida voltando para casa, não o vi de início no ônibus, apenas um carrinho de mão estacionado num canto na frente. Passei a catraca e quando me sentei no primeiro assento à esquerda, lá estava, meu mendigo fashion, à minha frente. Teso, quieto, com ele viajei, no entanto separados por balaústres, vidro e silêncio. Tanto já nos vimos, tanto nos encontramos, partilhamos logradouros públicos e agora ele desce no mesmo ponto que por anos eu desci. Temos algo em comum – não romanceio –, e talvez bem mais do que imaginamos em nossa discrição citadina.
Mendigo fashion, que continuemos nossa vida assim, individual, solitária, feliz e infeliz, marcada pela trajetória dos ônibus aonde nos esgueiramos e dos pontos fixos onde nos escoramos. Vida, vê como a admiração pode se agarrar ao inesperado, a um homem do qual nada sei; mas adivinho e tanto invento.
Elisa Andrade Buzzo
São Paulo,
18/8/2016
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