COLUNAS
Quinta-feira,
8/9/2016
Uma livrada na cara
Guilherme Carvalhal
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Uma cena chamou a atenção na 9ª Bienal do Livro de Campos dos Goytacazes, que aconteceu de 5 e 14 de Agosto. Uma autora tentava vender seu livro e decidiu usar de uma tática mais agressiva, diguemos assim. Ela interpelava passantes, falava, se promovia, chegou a quase esfregar seu trabalho na cara de alguém. Parecia um programa desses de torta na cara da TV usando um livro. Cômico para uns, trágico para outros. Mas não passou em branco.
Essa comportamento nos leva a pensar no atual patamar, em que produção cultural vai além daquela mera órbita do eu e do refletir. A figura de Montaigne ilustra bastante isso, o pensador recluso cuja preocupação se limita com o conteúdo de seus escritos e nada mais. Um panorama diferente do da autora acima referida e de um mundo em que produzir arte implica em vender a figura do autor, vender o livro, cuidar de diagramação, da roupa no evento. É preciso desentocar do castelo e ver a luz do dia.
Não é nova essa correlação. Há dois milênios Ovídio já contou com as graças dos poderosos, que lhe porporcionaram a possibilidade de se dedicar à sua arte (e depois acabou enviado ao exílio). Com o mecenas, os problemas cotidianos se perdiam e o autor se dedicava à sua finalidade existencial. O historiador Martin Gayford, que publicou uma biografia sobre Michelangelo, contou em entrevista que esse pintor foi o primeiro da história a se preocupar com sua imagem pública. Assim, o senso de imortalidade e de outras pretensões e preocupações não meramente estéticas penetrou no mundo das artes. Um pioneiro no estrelato.
Pensar a mudança nesse panorama desde os princípios da literatura ocidental até os tempos atuais pressupõe levar em consideração mudanças tecnológicas e sociológicas na relação entre homem e produção artística. A prensa de Guterberg ajudou a agilizar a reprodução de livros e sua popularização, a redução do analfabetismo ao longo dos anos aumentou o público leitor. Na Europa pós-revolução francesa o heroi divino ou aristocrático deu lugar ao heroi pebleu e as massas se viram representadas. O mundo mudou, mas a mais significativa das mudanças chegaria como consequência de outra revolução, a industrial.
O fenômeno a que me refiro é a sociedade de massas. Um novo modelo de socialização, mais impessoal e midiatizada, mais burocrática e tangida pelos valores da dependência econômica do que pelos laços de igualdade. Nessa nova sociedade formada nas cidades com aglomerações humanas jamais observadas surge a capacidade e a necessidade de consumo crescentes, a que se associa a uma mudança mais significativa na figura do artista.
Quando falamos em autores mais antigos, sabemos de sua existência através dos próprios escritos e outros relatos de época. Por exemplo, não temos entrevista com Maquiavel explicando suas ideias ou Kant participando de algo semelhante ao Roda Viva. Porém, à medida em que se criou a sociedade de massas, as relações se tornaram diferentes. A cultura entrou na lógica dos produtos e o artista juntamente se tornou ele próprio parte do produto. O nome de um Joyce ou de um Victor Hugo já bastaria para tornar uma obra satisfatória ao público.
Os críticos da indústria cultural bateram fortemente nisso. A reprodução massiva, a mesmice, a repetição como forma de condicionar o público a um mesmo gosto, tudo isso recebeu críticas de pensadores, muitos deles marxistas. E ainda assim o modelo industrial vendeu e entre muitos best sellers constam histórias cujo final é previsível pelo leitor, mudando apenas particularidades do enredo.
Do mundo de Adorno e Walter Benjamim ao atual, muita coisa mudou. Se eles se incomodavam com rádio e cinema, o nível de padronização de gostos culturais se intensificou. A globalização levou culturas locais de um a outro ponto, em um processo desigual onde países mais “poderosos” conseguem enfiar sua cultura goela abaixo sem receber o contraponto. O processo de midiatização transforma artistas em figuras extra-humanas e limita o próprio valor artístico da criação em si. Um disco da Beyonce é antes de tudo um disco dela do que algo a ser avaliado com valor crítico ou contemplativo. Sua vendagem será alta apesar da qualidade do mesmo. Figuras sem talento ou relevância são lançadas nesse meio, utilizando de alguma fama pretérita ou de uma fama construída para forçarem grandes vendas.
Essa sociedade ávida por status, onde privado e público se misturam e se sobrepõem, atinge em cheio o modelo de mercado artístico. O termo mais específico é esse, pois falamos da instância alem da produção, o processo de levar a arte ao contato com o público, o que, em uma sociedade de consumo, se caracteriza pelo mercado. Então, o mundo se molda a atender demandas. Grandes instalações capazes de chamar a atenção ou chocar ganham notoriedade, apresentações musicais são consideradas mais por valores como carisma e beleza do que pelo talento em si, e toda forma de espetacularização possível ganha o espaço a ser ocupado pela arte. O momento de catarse, contemplação, deleite ou reflexão a ser causado é substituido por mera diversão. Basta ir a um show atualmente e verificar a quantidade de fotografias disparadas. O momento é de celebração e diversão, estando longe de ideais estéticos.
Esse panorama gera discussões calorosas. Por exemplo, naquele debate espinhoso sobre Lei Rouanet há quem defenda o fim de financiamento público para área cultural, deixando o mercado definir o melhor e o pior. Deixar o mercado por si decidir está longe de ser a melhor maneira de produzirmos um modelo cultural, porém intervenções de fora sempre demandarão recursos, o que leva para instâncias políticas, e enfim. Ou então quando analisamos a normativa musical em rádios e TV e constatamos um engessamento de estilos, sem diversidade, e surgem propostas de alteração, como a lei de democratização midiática.
Há um certo sonho provocado pela ascensão da internet. O sonho de uma cultura equilibrado, onde há oportunidades iguais para todos, com ampla divulgação de conteúdo para todos. Em um primeiro momento, parecia tangível. Blogs, streaming, podcast e companhia davam voz a uma nova maneira democratizada de se comunicar. O tempo passou e aos poucos tudo se ajustou conforme os ventos. Alguns blogueiros, youtubers e companhia ganharam destaque e se aproximaram mais do modelo convencional de mediação (não faltam livros dessa turma nas livrarias). A ampla massa de produtores de conteúdo atinge um percentual menor, criando uma produção mais fragmentada para nichos específicos, enquanto a minoria atinge o grosso do público. Algo não tão diferente de tempos anteriores repaginado para o formato digital.
Essa reavaliação do papel do escritor perspassa toda a situação contemporânea. O modelo de se difundir produção literária pelas redes digitais soou como a nova poesia marginal, um suporte para o autor conseguir a proximidade com o leitor. Junto a isso, a midiatrizaçao em formato de espetáculo leva a transformar o escritor em uma palhaço de circo ou algo do gênero: é preciso participar de palestras e eventos, dar autógrafos, ser simpático, sendo que a função original é de simplesmente escrever. O sonho de ter a obra transformada em filme, o peso do gosto popular por obras eróticas ou por roteiros de série de TV em formato de livro mudando os rumos de sua produção. Tudo isso está presente no cotidiano da produção artística atual.
Essas circunstâncias devem ter levado à aproximação agressiva da escritora. O sonho de fama em um mundo capaz de prometer 15 minutos a cada pessoa, a busca por editoras em um mercado complexo e superlotado, onde sobra oferta e falta demanda, um público que procura livros pela capa ou pela importância do autores independentemente do talento de escrita: talvez sejam essas as razões para uma busca por vendas que leve o leitor a quase levar uma livrada na cara.
Guilherme Carvalhal
Itaperuna,
8/9/2016
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