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Terça-feira,
20/9/2016
O Quixote de Will Eisner
Celso A. Uequed Pitol
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Sobre “Dom Quixote de La Mancha”, de Miguel de Cervantes, já se debruçaram cineastas, pintores, desenhistas, músicos e muito mais. No campo dos quadrinhos, coube a Will Eisner, autor do clássico personagem “The Spirit”, elaborar a versão em arte sequencial – para muitos, a versão definitiva em arte sequencial – da história do Cavaleiro da Triste Figura. Falamos aqui de “O Último cavaleiro andante” (Editora Companhia das Letras, tradução de Carlos Sussekind).
Publicada em 1999, “O Último cavaleiro andante” tem 27 páginas e inscreve-se entre as últimas produções de Eisner, nascido em 1917, em Nova York, e morto em 2005, na mesma cidade. Àquela altura, o autor já havia publicado algumas de suas mais celebradas obras, como “Um Contrato com Deus”, que muitos consideram a primeira graphic novel de todos os tempos. Já era, portanto, um conhecido e admirado quadrinista “sério” – alguém capaz de adaptar um clássico da literatura para o formato das HQs.
No entanto, uma primeira mirada nos daria a impressão de que Eisner não tinha tanta confiança na autonomia de sua obra em relação ao clássico. O título original de “O último cavaleiro andante”, de Will Eisner, é revelador das intenções que seu autor tinha ao escrevê-lo: “An introduction to Don Quixote by Miguel de Cervantes”. Uma introdução, portanto, ao texto original, que deveria ser devidamente lido após o fruir da história em quadrinhos. Eisner parecia preocupado em preparar o terreno para o leitor jovem encarar o grosso volume de Cervantes, e nada além disso. Conforme veremos, há uma boa razão para crer que as coisas não são bem assim.
A narrativa da obra fica a cargo por Sancho Pança, o fiel escudeiro do Cavaleiro da Triste Figura, na altura já velho e contando histórias do seu tempo de juventude. O início coincide com o da obra original: em algum lugar de La Mancha vive um fidalgo chamado Alonso Quijana que é particularmente afeiçoado aos livros de cavalaria. De tanto lê-los, Alonso acaba acreditando nos ideais dos cavaleiros ali descritos e resolve por bem armar-se em um: toma uma armadura de seu bisavô, uma lança, um cavalo – ao qual batiza de Rocinante – e sai pelo mundo em busca de aventuras, lutando em prol dos necessitados, dos desvalidos, das donzelas e da honra.
A partir daí surgem algumas divergências entre a obra de Eisner e a original: para compor a HQ, foram escolhidos episódios particularmente rocambolescos da obra original, aqueles que mais deixam explícita a distância entre o sonho de Alonso Quijano e o mundo real: o capítulo da taverna que Quixote considera ser um castelo; o do menino açoitado, que ele pensa ter libertado; o da libertação dos presos, que “agradecem” agredindo-o; o da luta contra os moinhos de vento, que ele imagina serem gigantes; e assim por diante, até o fim da narrativa.
Lá pelas tantas, um diálogo entre Quixote e Sancho explicita as convicções do cavaleiro. O escudeiro pergunta-lhe o que são os ideais da cavalaria e como poderia explicá-los. Quixote afirma que o importante de tudo é acreditar: ele, Alonso Quijana, acredita que é um cavaleiro; logo é um cavaleiro, o grande Dom Quixote de La Mancha. De início, Sancho, o representante do bom senso e da sabedoria prática, acha aquilo sem sentido. Aos poucos, contudo, passará a participar do sonho do cavaleiro.
A narrativa, focada nos episódios que apontamos anteriormente, segue até o momento em que Alonso Quijana volta a si. É o momento em que deixa de ser Dom Quixote e transforma-se, novamente, no velho Alonso Quijano. Dá-se conta de que viveu um delírio – e nem os pedidos de Sancho Pança ao pé de sua cama para que volte a sonhar o fazem mudar de ideia.
No final da obra, uma inovação: surge o escritor Miguel de Cervantes com uma espada na mão e proclama: “eu o armo Dom Quixote para sempre!” E a história termina. Esta cena não consta na obra original: no último capítulo do “Dom Quixote” de Cervantes, a morte de Quijana serve para o autor tecer uma consideração crítica sobre a leitura das obras de cavalaria e dos delírios que ela acarretaria em seus aficcionados, que tenderiam a enlouquecer tal como o Quixote. A amargura cervantina, a ironia usada para descrever as ações e o fim de Dom Quixote, a crítica aos livros de cavalaria, aqui se transforma numa celebração ao sonho: em vez de ver no Quixote um homem adoentado pela leitura de obras fantasiosas e delirantes, Eisner o coloca como um mestre dos sonhadores de todos os tempos, digno de ser celebrado pela memória coletiva (na boca de Sancho, homem simples e rude do povo) e pela cultura “letrada” (representada por Cervantes), que imortalizarão o sonho e a utopia do Cavaleiro da Triste Figura.
Por isso, não me parece correto interpretar a adaptação de Eisner como mera “introdução”. Vejo “O último cavaleiro andante” como obra plena.
A beleza do traço de Eisner, com sua incomparável capacidade de dar expressão e vida às personagens, é um ponto à parte: os sonhos quixotescos são particularmente vívidos quando retratados a partir de sua pena. Quanto à narrativa, o procedimento de reduzir episódios foi correto tendo em vista o objetivo da obra: ela ficaria demasiado grande para o formato de arte sequencial .
Importante ressaltar o ano de lançamento de “O último cavaleiro andante”: foi em 1999 – dez anos após o fim do socialismo de Estado, desapontando milhões mundo afora. Era também o auge do discurso de fim da História, do neoliberalismo, dos “órfãos das utopias”, para usar a expressão de Ernildo Stein. Assim como o Quixote original aponta os últimos dias do romance de cavalaria, o Quixote de Eisner surge num contexto em que ninguém tem mais expectativas quanto ao futuro. Nos dois casos, o cavaleiro da Triste Figura percorre caminhos que já ninguém quer percorrer.
Celso A. Uequed Pitol
Canoas,
20/9/2016
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