COLUNAS
Terça-feira,
20/12/2016
O tremor na poesia, Fábio Weintraub
Jardel Dias Cavalcanti
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Quem é você... ainda? Parece ser a pergunta que a poesia de Treme ainda (ed. 34), novo livro de Fábio Weintraub, parece nos fazer. Somos apenas (a duras penas) uma espécie de ferida aberta, de restos humanos que reivindicam o que sobrou de si “no moedor de mundos”.
O vocabulário da poesia de Weintraub não está fácil de digerir. Torcicolosos (se é que essa palavra existe) seus versos quebram a espinha dorsal de nossa apatia. Cancro, mênstruos, infecção, gosma, micose, sêmen, treva, feridas, merda, imolação etc. Uma violência cravada em existências para lá de encardidas roça a nossa couraça. Agride nossa carapaça, mas nos aquece... ao mesmo tempo. Abrimos nossa dor, comunhão de perdas “num país que se faz com homens e tiros”.
Não há manual de instrução para o bem-viver, ou bem-morrer, se se quiser, dana-se tudo nos poemas. A poesia de Weintraub decidiu ser dura, fria, cortante, impiedosa... Eu não vi isso nos livros anteriores do poeta.
Existe razão para se fazer poesia nos tempos de hoje? Sim, se essa poesia não é espelho do mundo, mas resposta a ele, uma ranhura na sua carcaça podre.
O organismo perece, como também nosso sentimento de humanidade. É o que expõe o poema “Táxi”. Não sabemos mais se somos rodeados por homens ou bichos, mas sua aspereza desconfortável nos agride, a nós “ratos” ou “cobaias imaculadas” incapazes de agir diante da desumanização do outro e de nós mesmos.
TÁXI
com unha grossa de tanta micose
o velho me estende a pata
quando me sento a seu lado
infecto e amável
não lembra leão algum
embora eu me sinta rato
(não quero saber do espinho
cravo na carne de espasmos)
lavar, abluir
flambar se preciso for
a pele imolada ao contato
quando a corrida acabar
dispenso toque ou troco
sou cobaia imaculada
que não tira nem redime
os fungos do mundo
Um poema atrás do outro parece conjugar a desumanidade e os traumas que se completam nos outros. Uma rede de pesca que acumula cacos de carne, sofrimentos, angústias, desespero, enfim, a existência do animal humano, não abatido totalmente, pois “treme ainda”, como sugere o título muito bem escolhido para o conjunto dos poemas.
E esse tremor é o que os poemas captam sem dourar a pílula. Os poemas falam por si. Veja-se o caso de “Ferida”, do qual reproduzo partes:
FERIDA
I
esta ferida é uma boca
com lábios tão convincentes
que me arrisco a ordenar:
parla!
ela só sabe latir.
Ferida é uma espécie de cão amestrado, que incomoda, mas que se deseja manter ao lado (resquício ainda de alguma esperança de vida?), pois ao ser levado, gera a súplica do seu dono:
II
(...)
por isso agora suplico
aos que na noite passada
levaram meu doce bicho
que por favor o devolvam
o restituam a seu dono
de seu carinho carente
feito criança com febre
No velório, no restaurante ou na padaria, seja onde for, o poeta observa a fratura instaurada no corpo humano e a poesia-bisturi de Weintraub remexe as feridas, sem se ver, no entanto, na possibilidade de curá-las. Poetas não curam, mas podem ampliar o tremor, até que sejam percebidos. A frase de Marx que diz que se você quiser saber o que é o capitalismo basta olhar o que ele faz no corpo do trabalhador aqui se afirma. Esse corpo onde “feridas vão brotar instantaneamente” povoa os poemas de Weintraub.
“Ringue” e “Game over” são poemas da violência. Em “Ringue”, as imagens são impactantes. O médico, que deveria curar, “veste as luvas do boxeur”, o “chão te beija/ sem protetor bucal”, “o feto chuta/ como a alma soca”.
“Chuva” e “Pensão” tratam do imbróglio das relações sociais e humanas em transe: no primeiro caso, “subir custa, cair/ é dois segundos”, no segundo caso, “ele bulindo com a faca/ do outro lado da cama// cortou a camisa, o braço/ e já ia enfiar no peito/ quando tomei a peixeira” (...)/ “depois vira fera/ rasgou até na minha cara/ a certidão de casamento/ pra eu não receber pensão”.
Até no ambiente microscópico, o vocabulário duro se impõe na poesia de Weintraub. É o caso do poema “Delével” onde a gosma espermática, infecunda, comparada ao frio leite dos vampiros, fenece numa quase inutilidade sobre o lençol marcado por sua nódoa fácil de apagar. Até onde sei, o primeiro poema que vejo sobre o esperma.
DELÉVEL
com odor penetrante
a pocinha de sêmen
tonteia o mosquito
rapidamente
a gosma empapa o lençol
vai nutrir os ácaros em cópula
oxidar as molas do colchão
manchar o pinho da cama
onde o moço se deitou
é bem frio o sêmen
como deve ser
o leite dos vapiros
os lábios do moço
a pocinha de sêmen
nada adoece
nada fecunda
deixa contudo uma nódoa
leve
delével
E eis que uma flor, como a flor-carniça do mal de Baudelaire, um hibisco amassado se transforma em carne abjeta, rejeitada por cachorros, desprezada pelas pombas e que, sendo apenas um despojo, “a chuva não apodrece”. No entanto, o poema se faz pintura, tal qual uma obra de Delacroix, que dramatiza e sensualiza as cores com sua “confusão de vermelhos/ raiados de branco/ qual paz ou gordura/ fechando o canal”.
A profusão de poemas “sórdidos”, a dureza dos versos, a impiedade das situações, fazem desse livro de Weintraub porta de entrada para uma fenomenologia (e não sociologia) da vida atual, onde restos humanos baqueiam por aí, sem possibilidade de gritarem sua existência (o Grito de Munch silenciado). A vida despencando, sem caixa-preta.
CAIXA-PRETA
com quase todos aqui
acontece desse jeito:
aviões sem caixa-preta
despencados em silêncio
Talvez agora estejamos vendo, com esse livro de Weintraub, o seu nascimento como um poeta completo. Não há mais volta para o escritor, que agora confronta a página branca com seus versos sem meios tons, que despeja a verdade calcinante da poesia contra a sombra dourada do discurso. Daqui para frente o poeta tornou-se aquele que não teme a revelação da poesia.
Jardel Dias Cavalcanti
Londrina,
20/12/2016
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