COLUNAS
Quinta-feira,
27/4/2017
Dilapidare
Elisa Andrade Buzzo
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Circulam pelas ruas semiobscurecidas madrugada adentro, empurrando carrinhos de supermercado ou puxando carroças improvisadas. Ainda que possam não ser vistos, seus intentos são pressentidos, talvez como os primeiros habitantes daqui no início de tudo.
Eles perceberam aquele edifício de um andar recém-abandonado, displicentemente deixado, sem seguranças, com cofres vazios e pesados, documentos bancários e ali foram esquadrinhando, escarafuncharam e decidiram que dali poderia sair alguma coisa. Na verdade, muita; e quem sabe até as paredes, se possível fosse levá-las e tirar algum proveito.
Transformaram-se em lesmas, circulando na escuridão com seus corpos de ventosa. Fizeram-se como animais, numa fome de lucro. Tornaram-se sanguessugas a se esgueirar pelos vidros, metais, fios, esganados de gula. Papéis revirados, excrementos, no quebra-quebra não há cuidados. Nem capricho, pois aqui é um microcosmos de um todo vilipendiado. Poderia-se dizer que uma sorte de força natural vingou torta, em um avesso mais ambicioso. Como se um passo maior que a perna quisesse ser sempre dado.
Seus rostos estão secos, seus olhos esvaziados, mas bem abertos, famélicos. Agora, trazem lá de dentro uma coleção de gavetas. Tudo o que tinha grande volume foi saqueado, além das estruturas da construção, e agora se ocupam com muito afinco das pequenezas. O aprendizado foi com o pau-brasil, o aperfeiçoamento se deu com o ouro, as pedras preciosas e um solo gentil. Esta é uma floresta, melhor, esta é uma caverna, não, esta é uma terra raspada com o restante das unhas.
Em frente, passam jovens e crianças com fones de ouvido e skates, lixeiros jogam por cima dos ombros sacos pretos e pesados no caminhão de lixo. A cada desmanche, retornam na direção do grande viaduto. A madrugada abafa como um veludo preto gritos e marteladas. Então vêm à luz do dia, tão desavergonhados que já se sentem. Talvez porque a claridade facilite o serviço e, de todos os modos, ninguém ousa os incomodar.
E num início de noite, antes de seu retorno, surgem outros. Estes vêm com placas de metal soldar, lacrar o esqueleto com ruído e luzes brancas de fogos de artifício. O que poderá nascer desse abandono? Algo novo, uma bárbara natureza que com crueza tomará conta ao seu próprio modo, de chuva, brotos, baratas e ratos, até essa lembrança ser engolida pela morte de todos os habitantes que a presenciaram.
Elisa Andrade Buzzo
São Paulo,
27/4/2017
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