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Quinta-feira, 4/1/2018
Os Doze Trabalhos de Mónika. 7. Um Senador
Heloisa Pait
+ de 4100 Acessos

Leia a primeira aventura de Mónika, À Beira do Abismo.

Mónika saiu do aeroporto um pouco baratinada. Disse ao aviador que ia ficar vendo os pousos mais um tempo, tomando café instantâneo. Só que o aeroporto não tinha movimento. A tarde já chegava ao fim, era hora de voltar ao hotel.

O ônibus não vinha.

Perguntou a um senhor de pé, com malas, se ele sabia do ônibus, logo quando uma caminhonete parou rangendo pneus. O motorista, um homem forte e altivo, desceu e cumprimentou o senhor; o senhor respondeu a Mónika que não sabia. O motorista se adiantou, ofereceu carona e limpou as tralhas do banco da frente, enquanto o senhor botava as malas no carro e voltava ao aeroporto.

– Você mora onde? – o homem perguntou já na estrada, seguro na caminhonete como um cowboy.

– Eu... Eu dou aulas na universidade. Você?

– Não está me reconhecendo?

Mónika conhecia muita gente, mas tinha péssima memória. Se encontrava algum aluno, perguntava o tema do trabalho que eles tinham apresentado no curso. Aí sabia o ano, a turma, tudo. O problema é que às vezes os alunos não lembravam.

– Desculpa, eu...

– Eu sou o Ronaldo Caiado.

– Mas Goiás... é assim tão perto daqui?

– Tenho um sítio em Ambaíba. Coisa pequena, umas ovelhas. – O senador dirigia um pouco rápido demais. – É um sítio que só eu cuido. Dou vacina, toso, compro ração. O dia-a-dia o seu Manoel é que faz, estou no Senado. Já visitou o Senado? O Senado é como uma criação de ovelhas, não é muito diferente não, doutora.

Era engraçado o senador a chamar de doutora, como os feirantes do seu bairro. Os alunos a chamavam pelo sobrenome, era moda; ela sempre achava que buscam o pai. Mónika perguntou, como se estivesse assistindo aula:

– Como assim?

– Um projeto de lei, por exemplo. Se você tosar antes da hora, não sai nada. Tem que aguardar o tempo. Se chamar as ovelhas no grito, de longe, também nem adianta que vão te ignorar. Tem que chegar perto e ir tocando. Aguardando. E aí faz a tosa e sai aquela belezura de lã!

O senador tinha as mãos no volante, como se ainda dirigisse. Mas havia parado o carro no acostamento, de frente para o sol poente que deixava o mundo alaranjado. Não havia perguntado se ela queria parar, se a incomodava ficar na estrada deserta ou não, estava acostumado a mandar.

– Entendi.

– Também tenho um cachorro, claro.

– No congresso?

– No sítio. Uma raça húngara, um bicho muito inteligente que de longe até parece uma ovelhinha. Uma coisa bonita, viu? Mais esperto que muito deputado!

O senador riu da própria piada. Mónika sentiu um ciúme profundo do cão congressista, bonito, inteligente. Caiado falava, falava, mas não lhe fazia um elogio, não perguntava nada dela. Pôs as mãos no rosto e inclinou a cabeça, como se rezasse. O senador se espantou:

– Você está bem? Fiquei falando coisas da roça, a doutora deve estar acostumada com conversas mais elevadas.

– Estou bem, estou bem. É que fiz um passeio... Mas fale do cachorro. Como ele é?

Estava do lado do Senador Ronaldo Caiado, que podia fazer um tremendo escarcéu com sua denúncia. Podia lhe resolver todos os problemas na universidade. Entretanto, lhe faltava a coragem. Ela que falava o que lhe dava na telha, agora lhe faltava a coragem. O encontro havia sido fortuito, e se depois perguntassem como tinha sido, eles diriam que tinha sido fortuito e ninguém acreditaria. A verdade sempre tão inverossímil.

– Que bobagem, falar do meu pastor! Quero saber no que você faz pesquisa! Deve ser coisa muito importante.

Mónika sentiu um bem estar tremendo. Mas as idéias se atrapalhavam na sua mente. Se contasse o que ela realmente estudava, o senador não compreenderia. Então falou de um projeto secundário. Suas pesquisas sobre os Pentagon Papers, Edward Snowden, Deep Throat, Vanunu, Bradley Manning e o impacto de suas revelações nas relações internacionais. Explicou que cada um deles seguia um ritual muito bem desenhado, como se se oferecesse à imolação numa cerimônia sacrificial arcaica. Só que era tudo nos dias de hoje, com declarações na TV, depoimentos na justiça. Começava a explicar a diferença entre eles e o casal Rosenberg quando Caiado a interrompeu.

– Olha só! A doutora precisa ir lá pra Brasília contar pra gente tudo isso! E no Brasil, tem esse negócio de whistleblower? Ou aqui o que tem é dedo-duro mesmo, doutora?

Era isso que Mónika defendia. Que era preciso uma legislação para proteger os whistleblowers, que aqui eram muito mal vistos. Que sem isso sempre teríamos os escândalos descobertos por acaso, sem dar oportunidade para as pessoas comuns relatarem o que vêem nas repartições, nas empresas, até no Itamaraty. Estava ali, falando para quem realmente importava no país, para quem podia mudar as coisas. Mas a idéia de que o senador no fundo não via a hora de brincar com seu cãozinho lhe perturbava o raciocínio.

– Aqui tem mais dedo-duro mesmo, senador.

Ficaram os dois pensativos, admirando o pôr-do-sol à frente. Tinham acabado de se conhecer, mas buscavam a mesma coisa: como botar o país de pé? Era isso o que os preocupava, cada um a seu modo.

– Olha, o que precisava mesmo, doutora, já que estamos só nós dois aqui, era liquidar uma meia dúzia como a gente faz com a criação quando tem bicho doente que também já resolvia bem, não? Queria ver se tinha corrupção, se tinha essa bandalheira toda.

Caiado lhe lembrava o sertanejo John Denver, com aqueles traços indígenas. Perguntou:

– Você é índio, senador?

– Ah, doutora, quem não é nesse Brasil? Minha avó – a mãe dela foi roubada da tribo pelo meu bisavô. Cataram a bugra e levaram pra fazenda. No laço.

O senador gostava de rir. Jogava a cabeça pra trás e ria gostoso, os dentes bem tratados, afiados, brilhantes. Mónika sorriu aliviada com o fim da conversa sobre suas pesquisas. Ele continuou:

– Agora, atitude de índio isso não tenho. Essa coisa de beber e não fazer coisa nenhuma o dia todo, o mês todo, isso não. – O senador fez uma pausa. – Se bem que tem índio melhor que muita gente. Que cuida da floresta lá deles, não incomoda ninguém, quando vem pra cidade é pra trabalhar, até pra se formar.

Mónika quis dizer algo, o senador continuou:

– Você sabia que já dei palestra pra índio estudando pra ser médico? Sabia disso?

Mónika não compreendia bem a taxonomia do senador. Os índios, as ovelhas, o cachorro, os congressistas, ele mesmo. Ela. Sabia bolar perguntas, mas que pergunta podia fazer que lhe elucidaria a mente do senador?

Agora era ele que a olhava inquisidor, como se avaliasse uma ovelha, pela lã, pelo leite, talvez pela carne. Atirou:

– Você não é daqui, né?

– Nasci na Europa, mas vim pequena.

– Na Europa?

– É.

– E a doutora pode dizer onde, na Europa, ou acha que está falando com um matuto?

– Bom, na Hungria.

– De onde veio o Renan!

– Que Renan?

– Meu cão pastor, no sítio, te falei dele! Vamos lá, vou te apresentar o Renan, vocês que são húngaros vão se entender que vai ser uma beleza. Vou fazer um churrasco daqueles!

O senador não estava brincando quando dizia que Mónika e o cão Renan se dariam bem. Via os dois como gente, capazes de travar amizade. Mas como é que Mónika podia contradizê-lo, se tinha ciúmes do cachorro? Então aceitou ir ao sítio, provar o churrasco, talvez até ser tosada como se fosse um parlamentar.

Está no ar a oitava aventura de Mónika, The Heroes of the World.

Esta é uma obra de ficção; qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência


Heloisa Pait
São Paulo, 4/1/2018

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