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Terça-feira,
3/10/2017
A poesia afiada de Thais Guimarães
Jardel Dias Cavalcanti
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“Deixa... a escrita ser/ de palavras, lerda e rápida, cortante/ para atacar/ quieta para esperar,/ insone.” Esses versos de William Carlos Williams poderiam ser a epígrafe para o livro Jogo de Facas, de Thais Guimarães, publicado pela editora Quixote, de Belo Horizonte, em 2016.
Mas a epígrafe escolhida pela poeta para abrir seu livro, de autoria de João Cabral de Melo Neto, também não deixa de ter seu tom pesado no desejo de uma poesia “qual uma faca íntima/ ou faca de uso interno”. Podemos somar na densidade dos poemas do livro a luta da linguagem (a faca?) com os estratos da existência em sua dimensão cortante, insone e íntima.
João Cabral de Melo Neto escreveu um longo poema chamado “Uma faca só lâmina”, onde se percebe "a imagem de uma faca/ entregue inteiramente/ à fome pelas coisas/ que nas facas se sente". Aqui, no livro de Thais, o ordenamento de sentimentos, dramas, acontecimentos, não deixa de passar pelos cortes que a linguagem-faca tencionará a cada poema, matando essa fome que a lâmina-poesia tem de “alinhavar rasgos” da existência na linguagem. E a ideia de uma “faca só lâmina” de Cabral não deixa de ser a faca que ao cortar corta também seu portador. Por isso a escolha de Thais por uma poesia “faca íntima”, de “uso interno”. A linguagem vai alinhavar aquilo que ela própria cortou.
O livro é dividido em quatro partes: Planos de corte, Linhas de incisão, Prova de corte, Pontos de sutura. O que se desenha é o desenvolvimento do plano de corte ao ato da sutura como metáforas de uma linguagem que pretende esfaquear momentos da existência que são postos à prova a cada poema.
Uma aparição que chama a atenção no livro é a bela homenagem a poeta americana Sylvia Plath, com suas “palavra meteoro”, “palavra desterro” e a “sôfrega palavra - corte”, que indicam o caminho interno do próprio livro de Thais: esse jogo de facas perigoso como espécie de “último grito – abismo-”. A existência em crise é uma constante nas duas poetas, em Plath acaba na anulação da vida pelo suicídio, enquanto em Thais se resolve no poema “Sem título” como “uma ideia/ que perece/ sem ter sido”.
Afiados como uma lâmina, os versos de Thais tomam a vida como pretexto para a poesia. É na problemática da linguagem poética, “a mínima palavra/ o arremesso”, que a existência será redimensionada, mesmo sendo afiada “na frequência do silêncio”.
Uma bela metáfora para o sentido da poesia em si (e os sentidos da poesia de Thais) pode ser o poema “Leitura de mãos” que se propõe a “desafiar/ linhas rompidas// cavar/ plantar/ sementes desconhecidas// colher/ com luvas de aço/ as flores carnívoras do destino”.
Ferir o destino no preço que ele merece, colhendo-o como flor que é, com “luvas de aço”. Imagem forte para a poesia que apreende a vida devolvendo-lhe sua insensatez com a violência que a linguagem pode exercer.
Por isso, se em Maiakovski, como ele disse, “a anatomia ficou louca, sou todo coração”, em Thais não fica por menos o desvario anatômico no poema “às cegas” onde coloca o “caminho com o coração/ entre as pernas”. Cada coisa em seu não lugar, como desejam os bons poemas.
O desnorteamento da vida, que é o que a torna insone, como no poema “Desperta”, dá o tom existencial que sempre vai e vem na poesia de Thais: “nas dores miúdas da noite// vaso quebrado/ moído// espalho-me/ em cacos de vidro”. Desses cacos é que nasce a “outra meia verdade”, que é um reflexo de si mesma posado no espelho, como diz no poema “Nunca é tarde”.
A poesia também se faz catarse, dentro desse quadro de imagens cortadas e suturadas:
CATÁRTICA
descascar até o osso
sentir as falanges
em última instância
na jugular
apertar mais o pescoço
até sangrar
a língua
até que morra
à mingua
e se feche o ciclo
de tudo o que corrói
A luta da poeta com as palavras (e com a vida) perpassa todo o livro, fazendo com que o poema seja o lugar de uma batalha insana que se dá no momento da formação do verso por “palavras/ (as piores do tipo)/ ásperas” e a consequente leveza final no “último round” no seu apagamento:
ÚLTIMO ROUND
unidas pela raiva
as letras formam palavras
(as piores do tipo)
ásperas
dentro delas, um dragão
cospe fogo, longe
frases
piores ainda
unem
as piores palavras
queimam a língua
que as pronuncia
ferem o tímpano
que as capta
sob o manto rasgado
se esconde
um vocábulo
(violência)
delicadamente
apago
Esse apagar, que pode ser o desejo de evasão, retorna algumas vezes no livro de Thais, como no poema “Enquanto a espera é ponto”. Uma ave de porcelana quebrada “emudece na chuva/ lágrimas só lágrimas/ evaporam pela madrugada” e a libertação da dor, nas “mãos/ sem poesia/ nuas”.
A faca que corta seu portador é a poesia. A poesia que também descreve as mãos “nuas” que a escrevem como livres de sua dor. O fato da linguagem foi maior que a vida (que virou poesia) em si mesma.
Obs: A imagem usada neste texto é de autoria de Nuno Ramos (Lâmina) e a tradução do poema de W. C. Williams é de Andre Vallias.
Jardel Dias Cavalcanti
Londrina,
3/10/2017
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