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Terça-feira,
13/2/2018
Claudio Willer e a poesia em transe
Renato Alessandro dos Santos
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‘Stamos em pleno mar, ali, na página 12 de A verdadeira história do século 20 , de Claudio Willer, quando imagens das mais inusitadas pulam no colo dos leitores: “fragmentos celestes\ suspensos a uma nuvem\ podemos observar o lento giro dos portões do mar\ e sentir que a vida toda se condensa em um momento.” Na poesia, você sabe, os maremotos começam assim.
Esses portões em hélice são o coração do poema — um coração capaz de unir o pulsar e o mar a fim de fazer respirar as palavras do “livro invisível feito de água”, livro que traz “novas sensações\ escondidas por trás do vento”. O poema chama-se “Trópico de Sagitário” e como um colar de pérolas a revitalizar o pescoço mais delgado traz uma epígrafe daquele rapazinho teimoso que incendiou Paris na segunda metade do século XIX: "Empenhara-me, efetivamente, com toda a sinceridade d’alma, em revertê-lo ao seu estado primitivo de filho do sol".
O último livro de poesia é de 2016, e as pessoas que não conhecem Claudio Willer, quando se aproximam, estranham as atividades múltiplas a que se dedica: tradutor, palestrante, crítico literário etc. Et cetera: escritor, blogueiro, pesquisador com pós-doutorado em literatura, ativista cultural... Reticências: poeta, antes de tudo.
Suas oficinas literárias e seus livros confirmam o mister do artista: Anotações para um apocalipse (Massao Ohno Editor, 1964), Dias circulares (Massao Ohno Editor, 1976), Jardins da Provocação (Massao Ohno/Roswitha Kempf Editores, 1981) e Estranhas Experiências (Lamparina, 2004) — junte todos esses livros e terá uma coleção de obras rebeldes em que o espírito, inquieto em meio aos escombros, sobrevive, enquanto a literatura vai dando sentido à vida. Referências e referências invadem as páginas: Julien Gracq, André Breton, J.-K. Huysmans, Novalis, Herberto Helder e outros. Todos vêm, como os anjos tortos drummondianos, sentar-se sobre os ombros de Willer e chegam para reforçar as ressonâncias que a poesia do autor recebe.
Há alusões a autores da 7ª arte, em poemas que dialogam com Carlos Reichenbach ( Filmedemência ), Alfred Hitchcock ( Vertigo ), Ingmar Bergman ( Persona ); há menção a autores pouco conhecidos, como Jâmblico (245-325). Quem? Jâmblico: filósofo neoplatônico assírio, cujas ideias foram preservadas graças à doxografia, isto é, comentários que autores deixam sobre outros, como fizeram com Jâmblico, ele, com Pitágoras, e o Facebook, com a gente.
Punk is dad
Willer é poeta bissexto. Isso quer dizer que ele escreve com a mão esquerda? Não, rabugento, mas não por acaso lamenta a falta de editores de um universo livresco indisposto a publicar poesia. Do penúltimo ao último livro, passaram-se doze anos (do antepenúltimo ao penúltimo, 23). Esse silêncio é menos pelos pés para cima, o que no caso de Willer seria um insulto, do que pela ojeriza do mercado editorial, que segue imune à poesia, desprezando poetas, os quais vê como antenas de um certame lúdico com a língua, e só. Passe a salada, por favor. Tente, ó, novo bardo brasileiro, enviar um original às editoras que não cobram do autor pelo lançamento do livro e espere, ali, sentado àquele banquinho, embaixo daquela árvore, lendo Rip van Winkle.
Certo, mas e o livro de Willer, A verdadeira história do século 20 , como é?
Lá e de volta outra vez
Saiu primeiro em 2015, em Portugal, pelas mãos de Maria Estela Guedes, da editora Apenas livros, fazendo parte da coleção “cadeRnos suRRealistas sempRe"; já a edição brasileira é da Córrego, e não há menção à tiragem de exemplares. Tem poucas páginas (49) e nenhuma orelha, mostrando-se na aparência um livro bem simples, embora charmoso, como aquelas edições caseiras sem grandes fachadas, mas que se revelam sempre um bom lugar para a poesia morar. Traz “Cinema”, poema dividido em cinco partes, “Maremoto”, escrito a quatro mãos (as outras duas são de Roberto Piva; Axé, poeta!), um texto em prosa, de 1965, com anotações de uma “ficha de leitura” para todos os detetives selvagens dentes-de-leite que há por aí, além de 15 poemas com versos tabulados irregularmente pela página, recurso bastante utilizado pela poesia de Allen Ginsberg, autor beat que Willer vem traduzindo desde os anos 1980.
Mensagens, 1: enquanto releio Allen Ginsberg
porque o mundo é mágico
eu escrevo instalado em um canto tranquilo da cidade
onde servem café
e sei-me parceiro das leis secretas que regem o real
você enxerga \ eu enxergo à frente \ atrás
o que foi e o que será
poesia é isto: saber olhar
atentamente, distraidamente
e contar
tudo o que ninguém precisa saber
Eis aí uma acertada definição de poesia, que vai fundo no que ela, dando de ombros, oferece aos leitores, enquanto a clepsidra esvazia-se. Boa parte dos poemas tem apenas letras minúsculas, do início ao fim, marca da poesia contemporânea que há um certo tempo vem gostando do banimento da letra maiúscula iniciando os versos, e, falando deles, todos habitam aquele mundo periférico onde moram os sonhos, trazendo de lá notícias de uma terra em que o lirismo está por toda parte.
- em que dia chegará o repouso,
O mundo novo?
bem mais estranho que uma vida de província — a carta,
aquela carta, você a recebeu?
velas armadas
e sempre numerar os poemas
nostalgia da ternura — penetrar nesse mistério (ah, eles não vão
entender nada, tanto melhor — mas como conversavam entre si,
esses poetas!)
Por que enumerar poemas? Pela possibilidade de se pôr em ordem aquilo que, na vida, é caos? Esse é o fragmento 5 de “Séries”. Há música: rimas toantes que repicam, como “em que dia chegará o repouso\ O mundo novo?”, com o “o” de “repouso” e da expressão “o mundo novo” vibrando em assonância; aliterações em “p” e em “v”, figuras de linguagem simples, como um cais a um pôr do sol, mas que sempre fazem diferença.
Fanopeia, melopeia e logopeia são o moto-contínuo da poesia, diz a teoria, enquanto Mallarmé e Cia., donos das fantasias mais magmas, sopram os dados, jogando-os na mesa lá pelo último quartel dos 1800, fazendo girar a roda tudo de novo. Já Willer segue tanto pelo surrealismo como, também, por uma realidade que está ali, mas que para ser vista tem de ser percebida paradoxalmente pelos olhos atentos e distraídos dos leitores, como sugere em “Mensagens, 1: enquanto releio Allen Ginsberg”. Por sua vez, essa métrica não poderia habitar a simetria e, por isso, o autor deixou os versos o mais longe possível da forma fixa, que de maneira persistente, mesmo em tempo de lua cheia, em meio à liberdade do verso livre, carimba a poesia até hoje.
A verdadeira história do século 20
contemplação: estrela no fundo do mar
você: véu de gaze azulada roçando, suave apelo
furacão: róseo
perfeição: parábola de perfumes
lâmina: a mente alucinada
gruta: você os arcanos da natureza
matemática do sonho: esta nuvem
gelo: explosão de relâmpagos
essa solidez, essa presença: capim ao vento
rápidos, passando à frente: lavanda
e também sombra de árvore
montanha: inteiramente nossa
intimidade sorridente: no calor da tarde
Íris: o nome da flor, o seio ao sol
- quanta coisa você fez que eu visse
o acaso nos transportava e poderíamos ir a qualquer
lugar
o mundo tinha janelas abertas
e tudo era primeira vez
gnose do redemoinho, foi o que soubemos
Os dois-pontos criam relações entre signos dissonantes, que, com pouco ou nada em comum, sugerem pontes, de igualdade, levando o cocoruto do leitor a transpirar, língua entre os dentes, em busca de encontrar correspondências entre o que há antes e depois deles, e a poesia manifesta-se espontaneamente, gerando inquietude. Enquanto isso, o leitor rumina se o poeta não deveria, tal o estranhamento das associações, ter recorrido mais a esse procedimento, o qual repete também em “Novas histórias”, e a explicação recai sobre revelação, magia das palavras, gnose. “(...) só digitei aqueles pares de expressões que me pareceram revelados e poderiam ter algum sentido misterioso, a exemplo do que diziam os antigos e os atuais oráculos sibilinos”, afirma o autor no prefácio. E tudo se ilumina? Não, mas o archote continua na mão do leitor.
Pod4mos ficar assim? De Baudelaire a Willer, uma poesia que transcende a realidade vai buscar, lá no mundo dos sonhos, imagens surreais que riscam diagonais ascendentes, do fundo do mar ao céu mais cerúleo.
Renato Alessandro dos Santos é editor do site Tertúlia
Renato Alessandro dos Santos
Batatais,
13/2/2018
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