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Terça-feira, 5/3/2002
Sentido para a liberdade
Bruno Garschagen
+ de 2300 Acessos

A necessidade de purgar os pecados faz o Deus cristão ser fundamental na vida dos ocidentais. Como aquela mãezona alemã superprotetora, mas implacável na violência verbal e física. Seria impossível para uma numerosa turma viver num mundo de desejos ilimitados sem a crença de “algo” que absolvesse a alma.

Aqueles vícios, aquela mentirinha sem valor ou aquela traição deslavada não poderiam ficar sem o perdão dos olhos longos que vê de cima e por cima, das barbas. Não há lágrima que sirva melhor à alma do que a catarse espontânea de saber que existe salvação às piores vilanias e atrocidades; aos mais insidiosos insultos e imposturas.

E não adianta fazer o “bem” sem um motivo que o justifique ou sem ter a quem atribui-lo. Pega mal pacas simplesmente afirmar “fiz porque era o certo” ao invés do desgastado e sempre citado “Deus quis assim”.

As religiões cristãs costumam atrair e conservar a turma através da imagem do padrasto punitivo e da barganha da purificação pela boa conduta. O diabo, meus caros, sempre foi o grande amigo do cristianismo. Como atrair a massa sem o terror do inferno? Judas também foi fundamental. Se comportou conforme o script: seu beijo assexuado abriu caminho para toda a via crucis e todo o blábláblá que o leitor sabe de cor.

Não há dúvidas de que o escambo espiritual é tão poderoso que qualquer outra escolha é tida como “errada”, anticristã, enfim. Talvez justifique porque livres-pensadores ou espíritos livres não passem de personagens estranhos e logo embalsamados por adjetivos do tipo ateus, agnósticos, niilistas, quando, na verdade, qualquer definição, por mais ampla, dificilmente abrangeria seus pensamentos mais puros e impuros.

Imagine se Deus não existisse — ou tivesse morrido, como declarou W. F. Nietzsche. Quantos continuariam a ser bondosos por acreditar nisso como uma forma de vida? Quantos manteriam a conduta íntegra sem o medo do Big Father? Quantos veriam um sentido na liberdade espiritual?

Não há porto mais seguro do que a religião. É o caminho mais rápido para se purgar os pecados: viver, pecar e purgá-los novamente. Houve um tempo em que ainda imaginava o ser humano capaz de praticar o autodomínio e a responsabilidade. Engano ululante. É possível encontrar essas atitudes em pequenos grupos incapazes — pela deficiência quantitativa — de gerar qualquer transformação social.

O mais curioso e desanimador é que essa análise, que deveria atingir como um machado os que crêem na existência do imponderável, serão digeridas pelos grupos que citei. E causar uma ou outra reação de despeito ao invés de fazer pensar. Na falta de argumentos ou considerações, é melhor agredir. Reagir agressivamente (“tenho minha opinião e pronto”) é sempre a melhor forma de esconder as deficiências do intelecto. E dificilmente se consegue alguém para debater sem que a esgrima verbal se restrinja às idéias expostas. O que se vê (como vi por duas vezes) é o ataque pessoal de figuras cuja biografia não fariam parte nem de rótulo do papel higiênico “Carinhoso”.

Há necessidade de uma ética maior, que transcenda as crenças religiosas e se baseie no respeito. Talvez seja esse o sentido não compreendido do Humanismo. Respeitar ou amar porque “algo” ou alguém deseja assim — seja Deus, Maomé, Gandhi, Cristo, o padeiro, Fernando Henrique —, reduz o sentimento à insignificância de uma existência vulgar.

Se não há escolha, mas imposição, o sentido perde-se na escuridão de uma manhã de inverno em que os frutos apodrecem na árvore da submissão.

Concepção

A mais sensata (e não cristã) definição de Deus que li foi forjada por Aristóteles (384-322 .C.). Para o grego, Deus é pura forma isenta de matéria; não é uma parte do universo e nem está no espaço nem em movimento, é a causa última do movimento.

Não se trata de um Deus criador, então. O mundo coexiste eternamente com Ele, acreditava Aristóteles. Por essa concepção, é falso dizer que Deus se interessa pelo mundo e dedica amor à humanidade porque existe acima e além do mundo, num estado transcendente de contemplação, friamente desligado de nossa maneira de pensar. Alerta-nos o filósofo de nossa irresponsabilidade ao transferir para o transcendente nossa responsabilidade.

Máximas

Deus está morto. Mas seu cadáver não deixa de ser violado.


Bruno Garschagen
Cachoeiro de Itapemirim, 5/3/2002

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