COLUNAS
Terça-feira,
7/8/2018
Desdizer: a poética de Antonio Carlos Secchin
Jardel Dias Cavalcanti
+ de 5500 Acessos
A ampla criação poética de Antonio Carlos Secchin, publicada no livro Desdizer, pela editora Topbooks, em 2017, reúne sua produção dos anos de 1969 até 2017. É um bom momento para se acompanhar a trajetória de um poeta através das transformações de temas e formas porque passa sua poesia. Não cabe a esta resenha ter uma visão clara desse percurso, mas apenas chamar a atenção para algumas questões que envolvem sua poesia.
Ao adotar como título do livro a palavra “desdizer”, fica clara a opção por uma definição de poesia que talvez acompanhe o poeta constantemente. A poesia é aquele lugar da linguagem que se permite dizer contrariando o dito, por vezes até pervertendo o léxico. Como disse Barthes, a língua é fascista, pois ela obriga a dizer (e dizer de determinada forma), já a écriture não. Diferente da língua como poder, estrutura e regra, a escritura é a língua do escritor/poeta. O poeta é aquele que pode desdizer o dito.
No poema “Eu estou ali...”, Secchin torna evidente o valor da palavra que dá título ao seu livro, Desdizer, que funciona como uma espécie de porta de entrada ou aviso aos navegantes de sua poesia. Aqui vale a incerteza dentro da certeza, do espelhamento que reflete um outro que não aquele que se posta frente ao espelho: “Estou ali, quem sabe eu seja apenas/ a foto de um garoto que morreu. (...) Eu o chamo de meu filho – e ele é meu pai.” Vale a pena reproduzir o poema, aliás um dos mais belos do livro, para que se entre nesse espelho de incertezas.
ESTOU ALI...
Estou ali, quem sabe eu seja apenas
a foto de um garoto que morreu.
No espaço entre o sorriso e meu sapato
vejo um corpo que deve ser o meu.
Ou talvez seja eu o seu espelho,
e olhar reflete em mim algum passado:
o cheiro das goiabas na fruteira,
o murmúrio das águas no telhado.
No retrato outra imagem se condensa:
percebo que apesar de quase gêmeos
nós dois somos somente a chama inútil
contra a sombra da noite que nos trai.
Das mãos dele recolho o que me resta.
Eu o chamo de meu filho – e ele é meu pai.
No poema, a constituição do eu é levada ao paroxismo: o espelhamento contra a chama da noite reveste este eu de uma imagem vivida na penumbra do ser, solidificada num retrato que mistura reflexão e memórias sensoriais proustianas, como o cheiro das goiabas e o murmúrio das águas no telhado.
No texto “Escutas e escritas”, que finaliza Desdizer, Secchin expõe as desrazões do poeta, seu lugar específico como “não lugar”, enfim, traça a sua própria poética - e isso fica mais claro do que nunca em um dos poemas que ele cita, “Autorretrato”, que reproduzo abaixo. Aqui o poeta é esse gauche na linguagem, aquele que cria na contramão, que vê nascer sua obra nas incertezas da sombra e da neblina: “sabe que nasce do escuro/ a poesia que o ilumina”.
AUTORRETRATO
Um poeta nunca sabe
onde sua voz termina,
se é dele de fato a voz
que no seu nome se assina.
Nem sabe se a vida alheia
é seu pasto de rapina,
ou se o outro é que lhe invade,
numa voragem assassina.
Nenhum poeta conhece
esse motor que maquina
a explosão da coisa escrita
contra a crosta da rotina.
Entender inteiro o poeta
é bem malsinada sina:
quando o supomos em cena,
já vai sumindo na esquina,
entrando na contramão
do que o bom senso lhe ensina.
Por sob a zona de sombra
navega em meio à neblina.
Sabe que nasce do escuro
a poesia que o ilumina.
Embora aponte nas suas reflexões para uma ideia da poesia como “a insuficiência da palavra frente a um real que sempre lhe escapa”, ele sabe que a poesia é esse outro real constituído no avesso do próprio real. No poema “Fogo”, isso fica claro nos versos que cito a seguir: “O que faço, o que desmonto,/ são imagens corroídas,/ ruínas da linguagem,/ vozes avaras e mentidas. (...)”. É neste desmonte de um real constituído pela ruína da linguagem que o poeta respira: “Respiro o espaço/ fraturado pela fala/ e me deponho, inverso,/ no subsolo do discurso.”
O poema contradiz o mundo, sua linguagem estruturada e, ao não deixar por menos, contradiz o próprio poeta, como os versos de “Biografia” registra: “O poema vai nascendo/ sem mão ou mãe que o sustente,/ e perverso me contradiz/ insuportavelmente.”
O desdizer - espécie de estilhaçamento do sentido - que percorre a poesia de Secchin, também pode ser visto no seu espelhamento em outro poeta, como no poema “O espelho de Donizete”, espécie de lamento pelo poeta falecido Donizete Galvão, cuja epígrafe do mesmo toca profundamente Secchin: “Espalho cacos de um espelho./ Minha face por inteiro não verei./ Veja você por mim qualquer dia.” Registro do encontro de uma irmandade poética: “Os cacos da voz dispersos/ no jorro da sua poesia/ me tornam teu irmão urgente (...)”.
E não para por aí essa busca pelo poema que se contraria. Os exemplos poderiam se multiplicar ao vasculharmos todo o livro, mas fico com apenas mais um, que sintetiza muito do que se disse acima sobre a poética de Secchin em Desdizer:
RECEITA DE POEMA
Um poema que desaparecesse
à medida que fosse nascendo,
e que dele nada então restasse
senão o silêncio de estar não sendo.
Que dele apenas ecoasse
o som do vazio mais pleno.
E depois que tudo matasse
morresse do próprio veneno.
Os grandes poetas modernos tiveram consciência de que poesia é linguagem, sua própria e mais importante preocupação, que fez dela um mistério tão fértil e esplêndido. O que Secchin procura nesse lugar da poesia, o “silêncio de estar não sendo”, é a libertação do artista de si próprio, da arte em relação à obra de arte particular e em relação à história, da mente face às limitações perceptivas e intelectuais.
O silêncio de “Receita de Poema” é o próprio desdizer, é a relutância do poeta em se comunicar no registro da linguagem do poder. E aqui aproveito uma citação de Susan Sontag: “O silêncio é o último gesto extraterreno do artista: através do silêncio ele se liberta do cativeiro servil face ao mundo, que aparece como patrão, cliente, consumidor, oponente, árbitro e desvirtuador de sua obra”.
Encontrado o silêncio, a poesia de Secchin é a música que falta a um mundo que perdeu a capacidade de escutar no sentido pleno, um mundo onde falta a palavra poética, porque está atolado de palavras corrompidas.
Jardel Dias Cavalcanti
Londrina,
7/8/2018
Quem leu este, também leu esse(s):
01.
Marcelo Mirisola e o açougue virtual do Tinder de Jardel Dias Cavalcanti
02.
Nos porões da ditadura de Luís Fernando Amâncio
03.
Reflexões sobre o ato de fotografar de Celso A. Uequed Pitol
04.
A noite do meu bem, de Ruy Castro de Julio Daio Borges
05.
Apresentação: Ficção e Sociedade de Heloisa Pait
Mais Acessadas de Jardel Dias Cavalcanti
em 2018
01.
Entrevista com a tradutora Denise Bottmann - 26/6/2018
02.
A Fera na Selva, filme de Paulo Betti - 22/5/2018
03.
Goeldi, o Brasil sombrio - 20/11/2018
04.
Hilda Hilst delirante, de Ana Lucia Vasconcelos - 16/10/2018
05.
O pai da menina morta, romance de Tiago Ferro - 3/4/2018
* esta seção é livre, não refletindo
necessariamente a opinião do site
|