COLUNAS
Quinta-feira,
20/9/2018
Cidades do Algarve
Elisa Andrade Buzzo
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Toda cidade tem um braço de rio, forte, anguloso, caudaloso, rindo da gente, escorrendo-se à vontade, sem se importar comigo, marinheiro de primeira viagem, na tentativa de abraçar suas margens, tocar suas águas inclinando o corpo da ponte.
Toda cidade tem um pedaço de mar, que adentra pelos cantos de uma península recortada de falésias, que colore de azul-nuvem as pontas de um cabo guarnecido de um farol acastanhado, enfurece e venta fresco pelas furnas salpicadas de espuma, que brinca de esconde-esconde com sua presença variada na estrada, com uma faixa de areia pedregosa onde as conchas se ralam e rolam até virar um pozinho fino multicolorido, uma onda verde e suave para se nadar peito, em cujo raso circundam filetes de peixe de um cinza metálico.
Toda cidade tem um centro histórico desenhado numa geometria suave de prédios baixos, avarandados pequenos e recolhidos, cafés com esplanada, restaurantes adoráveis com baldes de peixe recém-pescados, tortas de maçã que se desmancham, limonadas com morango, calçadas de pedra portuguesa em desenhos geométricos, de flores ou peixinhos, cabeleireiros ornamentados com cabeças artificiais, ou uma rosa monumental e crianças matreiras nas portas, velhos como sentinelas nas sacadas baixas, sem contar a camada mais antiga de edifícios de janelas emolduradas com pedra, paredes brancas ou azulejadas, simples gradeado, um arco monumental com seu grande relógio redondo como entrada, compridos gravetos enfeixados nos ninhos abandonados de cegonhas.
Toda cidade tem uma ruazinha estreita, em que um gato assoma na janela, um ruído de televisão sai da porta entreaberta, em cidades nelas há sorveterias al-ice, expondo gelados azuis, papelarias com artigos antigos e vitrines escuras, canetas de sardinha, para-sóis na rua do Comércio, cortinas tapando o árduo sol, até mesmo vilas atapetadas que recebem ingleses e sua mala de tacos de golfe; apenas os indícios de presença humana, mas em total tranquilidade como uma vila de fantasmas silenciosos e ausentes.
Como aqueles que, numa praça, principal, as cidades têm, em forma de uma estátua, uma sombra preta viajante, infante, navegador, astrônomo, contornada pelo limite do metal escuro, um dedo apontando, uns braços abertos ou uma fronte altiva, todos no saudosismo da descoberta e da perda das riquezas do mundo.
Em cada cidade há uma igreja ou igrejinha, mesmo sé antiquada com caveiras esculpidas no topo dos arcos, capela ou capelinha de ossos, com crânios e fêmures quebrados, muitos buracos para esmola, um velário democrático que aceita qualquer salário na Nossa Senhora da Graça, relicários guardando certas pérolas dos homens, turíbulos e navetas aposentados, em metal precioso e maciço, pequenos museus com anjos pousados e santos compenetrados.
Toda cidade tem uma vida que começa e recomeça, num capítulo de sonho em que um olhar temporário a atravessa em cheio e se alegra e se entristece, toda cidade tem um ar com um quê de lar, é para morar e se recostar em cada cômodo seu, todo cais, e cada esquina, um quebra-cabeças, em que estranhos grupos de peças se reúnem e dispersam em séria comoção.
Elisa Andrade Buzzo
Lisboa,
20/9/2018
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