COLUNAS
Terça-feira,
2/10/2018
O papel aceita tudo
Jardel Dias Cavalcanti
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Um desenho de Rembrandt. Uma casinha com chaminé feita por uma criança. Os versos de amor de um adolescente. O “Soneto de Separação” de Vinicius de Moraes. A lista de compras do supermercado. O esboço de um romance de Stendhal. O número do telefone de uma nova paquera. O endereço do advogado que vai cuidar do divórcio. As notas musicais da cabeça de Beethoven.
O dia e horário de um voo para a Europa. A receita de um prato anotada por um amigo. A lista dos livros que gostaria de ler. A última canção que você compôs. Um nome para entregar a um assassino de aluguel. A anotação de Proust sobre as lembranças despertadas por um bolinho durante o chá. A carta de um suicida antes de saltar pela janela. O óbvio que precisa ser dito. A cópula com a traça que o destruirá. O desenho do mapa da cidade. O comunicado de um chefe de Estado declarando guerra. As anotações do psicanalista sobre suas neuroses. O esboço de um poema que você tenta escrever. O parecer sobre uma tese de doutorado. As recomendações para a empregada. O telefone de uma boca de fumo. O número das contas a pagar. A carta de despedida de um soldado na guerra.
Uma gota de perfume num bilhetinho de amor. A lista de presentes para o natal. Um desenho geométrico durante aquela aula insuportável. A justificativa da recusa do seu romance para publicação. O registro de sua assinatura num cartório qualquer. Suas melhores intenções para o novo ano que se inicia. Os números da diminuição do seu peso durante um regime. Os livros emprestados.
O nome das pessoas que virão para sua festa de aniversário. A cópia daquela letra de música que você quer decorar. Um bilhete que você entrega ao colega durante uma reunião Alguns verbos da gramática alemã que você anda estudando. Um bilhete para seu filho avisando o que deixou para ele comer. Um artigo para um congresso.
O agradecimento ao amigo pela hospedagem. O horário de um encontro marcado naquela estação de um país distante. Os palavrões que você adora falar. O desenho do pé de sua namorada. Os rabiscos de uma criança que mal acabou de vir ao mundo.
A marca de batom que forma o desenho da boca dela. A conta do restaurante. Uma carta de adeus dizendo que o amor acabou. A sentença de um juiz condenando alguém. A impressão de um e-mail. Uma carta que você jamais enviará.
O papel aceita tudo. Até ficar em branco diante da falta de inspiração.
Jardel Dias Cavalcanti
Londrina,
2/10/2018
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