Não vou fazer a crítica literária. A ideia não é essa. Portanto, podem se assossegar os senhores e as senhoras donos da palavra sobre os livros e as leituras. Não quero ocupar esse lugar. Mas é que pode ocorrer a uma leitora qualquer, como eu, um desejo incontido de comentar suas leituras. Não pode? A leitura, não raro, nos move do lugar, nos provoca, e se ela o faz, talvez acelere as partículas que movem o desejo da escrita. Pode ser. A mim sempre ocorreu isso, desde a infância, quando tomava um livro, lia-o e dele derivavam ideias que não podiam ficar contidas. Era hora de escrever. E guardar. Ou escrever e enunciar. É isto. Continua sendo assim.
Histórias nada sérias
E nas aventuras de leitora entre os livros que aguardam na estante encontrei Histórias nada sérias, de Maria Valéria Rezende, uma de nossas mais notáveis escritoras vivas. Autora de romances premiados, publicando por grupos editoriais grandes e dona de um fôlego impressionante para a narrativa, Maria Valéria não tirou os pés do chão. Histórias nada sérias é o resultado da compilação de contos escritos ao longo de oficinas de escrita que acontecem em João Pessoa, Paraíba. A dinâmica é lançar temas, como estupro, cicatriz, lenda pessoal ou barulho, só para alguns exemplos, e, a partir disso, produzir contos. O livro, então, é uma coletânea desses contos, 24, mais exatamente, que surpreendem menos ou mais, conforme a expectativa e o gosto do leitor ou da leitora. Alguns textos são muito curtos, outros têm duas ou três páginas de livro.
Alguns contos deixei anotados, uns para usar em oficinas, porque merecem uma discussão editorial, além de literária; outros deixei silentes, porque nem tudo se conecta com o que queremos ou somos. Em alguns casos, me vi uma leitora surpreendida. A inteligência narrativa é sempre algo a se admirar. E como é interessante lidar com uma Maria Valéria na voz da contista e outra na voz da romancista.
Merece destaque o fato de que a publicação é da pequena Escaleras (2017), editora capitaneada pela também escritora Débora Gil Pantaleão, desde a capital paraibana. Com trabalho gráfico profissional, Histórias nada sérias se soma a um catálogo de autores contemporâneos, e Maria Valéria Rezende, é claro, empresta capital simbólico à iniciativa editorial corajosa que é, quase sempre, manter uma pequena editora.
Impossível como nunca ter tido um rosto
Na mesma vibe da edição limitada, desta vez por autopublicação, andei com os olhos pregados em Impossível como nunca ter tido um rosto, do poeta mineiro Ricardo Aleixo, uma das vozes mais relevantes dos versos nacionais, com direito a apresentações em outros países, em outras línguas. O livro, sem ficha catalográfica ou ISBN, mas com prefácio de Dirceu Villa, reúne 33 poemas nascidos entre 2010 e 2015, conforme aponta a informação nas primeiras páginas do volume. Longilíneo, de capa negra e riscos vermelhos, o livro de Aleixo traz por dentro a força do poeta que conheço há tempos, em sua impressionante missão cirúrgica com as palavras. Enquanto luta com elas, também dança; afinal, uma espécie de capoeira.
Em alguns poemas parei. Parei mais. Levantei a cabeça, como ensinou a leitura de Roland Barthes, uns anos atrás. Porque alguns poemas se comunicaram comigo de maneira contundente, caso de “Queridos dias difíceis”, que não me sai das impressões e para o qual quero gravar um vídeo. Soou-me um hino à resistência e à coragem. Uma provocação das boas, talvez. Marquei vários outros, dobrando os cantinhos das páginas, conforme gosto de fazer; vincando o papel com minha respiração, que não é a mesma de quando vivo sem ler poesia.
Ricardo Aleixo tem vários livros publicados por pequenos selos editoriais e no regime da autopublicação, mas é preciso dar relevo ao conhecimento de edição que ele acumula. Além de poeta, é tantas outras coisas, incluindo-se editor, de si e de outros, que é impossível não reparar no cuidado com a edição deste título. O projeto, aliás, assim como a tipografia ficam a cargo de Mário Vinícius, estudioso da edição em Minas Gerais. Primores à parte, Impossível... é antecessor de outros livros, numa trilha que levou o poeta ao catálogo da respeitável Todavia, editora que pode levar o autor a outras esferas e outros voos.
E mais
Vieram e virão mais livros na sequência. Alguns com o efeito de me instar ao comentário, outros talvez não. Há leituras que provocam movimentações internas, aceleram partículas, atiçam, como diria minha avó. É com isso que conto quando escolho ser uma leitora de literatura contemporânea. Ou de literatura, simplesmente. O que não chover no molhado será meu texto preferido, porque não pretendo gastar meu tempo apenas com o que eu poderia antever ou adivinhar. Faz parte da leitura literária lidar com o espanto: da ideia e do texto.
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Abaixo, o poeta Ricardo Aleixo nos Encontros de Interrogação, Itaú Cultural, em 2016, com poemas de Impossível como nunca ter tido um rosto