COLUNAS
Terça-feira,
26/3/2019
K 466
Renato Alessandro dos Santos
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Vai mesmo ler este texto? Então, antes de tudo, vai lá no meio dele e aperte o play do Youtube; assim, enquanto ficamos por aqui, você vai lendo e ouvindo Mozart, “Concerto para piano e orquestra, em ré menor, K 466, número 20”.
Quando eu tinha 16 anos, comprei um disco da Abril Cultural com essa peça musical e ouvia-o, adolescendo, adolescendo, caraminholas pra cá, caraminholas pra lá. Fico pensando o que é conviver com uma música que faz parte de você desde os 16. Um menos três, dois pra lá, dois pra cá, e já são 30 anos com esse Mozart a servir de trilha sonora a momentos de minha vida.
Vou ouvindo essas notas que parecem me pegar no colo e me balançar, ninando, e, nos braços dela, cada minuto parece significar mais do que um minuto qualquer, como se houvesse horas em que o espírito não pode mais ficar sem tomar banho, e então vem uma lua enorme, mesmo quando ainda é meio-dia, e me diz o-lá! -- e eu sorrio, enquanto meu pé esquerdo fica a tamborilar o chão, como se assobiasse. Surgem violinos, o maestro com as mãos a espirrar e um pianista arfando, quase se deitando sobre as teclas de tanto que suas mãos foram para lá e para cá e seus braços doem, seu corpo parece sucumbir e prestes a desistir, a explodir, mas não: Mozart está ali em alma viva, como se dissesse, não desista! E não é assim, a vida? Cheia dessas horas em que nem mesmo um segundo vale a pena e, em outras, a música parece expandir-se dentro de você, como um acorde em que a leveza das mãos faz soar todo o universo. Não é assim?
As notas não param. Não fosse uma tristeza que parece percorrer todas elas, todas-as-notas, não saberia que nem mesmo há um dia germinando lá fora, enquanto aqui dentro, pra lá e pra cá, minhalminha não tem descanso, sobejando espírito. Vêm instrumentos que sopram. Flautas, oboés, trombas que parecem dizer, olha, está um dia terrível lá fora, e o piano, ouvindo isso, vem trazer notas e mais notas que esparrama diante de mim, e eu, sem nada que possa fazer, só me rendo, de olhos abertos, lamentando, lamentando, uma tempestade em um copo d’água, se me lembro que a não muitos passos daqui pessoas passam fome e não têm onde morar, e eu poderia, ou deveria, dar um canto de minha casa pra elas, mas não é bem assim, e não faz sentido esperar que o mundo possa ser um lugar melhor, sem essas notas que Mozart tirou de uma gaveta lá dos fundilhos da alma dele, uma alma imensa, do tamanho do mundo, do tamanho do esforço do pianista prestes a desmaiar de tanto que suas mãos vão pra lá e pra cá, e seus dedos, como se tocassem o fogo, parecem não desistir jamais, mesmo agora, quando sangram. Porque a vida é sangue. Nos ouvidos; ouvidos que me deixam ter (quase) certeza de que Mozart não existiu realmente.
E chegamos até aqui. Nada de histórico, crítico, informativo, decerto, você aprendeu sobre o “Concerto para piano e orquestra, em ré menor, K 466, número 20”, de Wolf, mas se o vídeo e o áudio continuam a rolar é porque, de alguma forma, Mozart está a chamar você e, agora, serão dias, meses e anos a esse chamado você ouvir, cujo nome pode até esquecer, bem como informações históricas e musicais que vier a arranjar, mas essas notas, esse conhaque, ficarão em você por toda a glória de sua existência, enquanto pra lá e pra cá, aonde quer que vá, vai ouvindo essas notas que mais de 300 anos atrás Mozart deixou para nós, le pigs. As coisas são assim mesmo.
Renato Alessandro dos Santos, 47, é autor de Todos os livros do mundo estão esperando quem os leia e de O espaço que sobra, seu primeiro livro de poesia (ambos publicados pela Engenho e arte).
Renato Alessandro dos Santos
Batatais,
26/3/2019
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