COLUNAS
Quinta-feira,
16/5/2019
Numa casa na rua das Frigideiras
Elisa Andrade Buzzo
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Como imaginar essa mulher, inerte? deitada com os braços estendidos, morta? com os braços lançados num movimento final para fora da cama, teatral num palco sangrento, os lençóis com umas dobras eternas? ou ela jaz no chão de uma casa, sobre um carpete pontuado por manchas escuras?
Como imagino essa casa, esvaziada, ainda que contenha um corpo de mulher, que não é mais mulher, mas apenas corpo (ou não mais que um, ou seja, tudo, ainda preso ao mundo), proporcionando volume à estrutura da construção, rendendo um sentido já sem motivo, obedecendo a casa ao que fora decidido como seu destino: o abrigo do corpo.
Imagino essa casa sendo de janelas abertas, e espantadas, como costumam ser as janelas das casas portuguesas, abertas para um claro dia sossegado, pois a mulher não teve chance de fechá-las,com certeza, pois não sabia que uma espécie de noite lhe chegaria, e cortinas, esvoaçantes, ensebadas, estufando-se para fora da casa como respiração e encontrando a rua como uma bandeira de estranha paz enfim alcançada.
Como imaginar a rua onde está essa mulher, esse quarto, essa casa? uma rua assim, também parada, que não fervilha de gente, nem turistas, mas é estreita, onde passa uma pessoa de cada vez, não porque mais não caibam, mas porque é a vida solitária, e a morte sozinha também, a rua de todos, úmida, com edifícios baixos em pedra esfacelada.
E fora do alcance do local do ocorrido, a notícia dada na televisão é banal, uma mulher desconhecida, numa rua pra lá de esquisita, rua das Frigideiras e uma mulher arrefecida. Num café na cantina, ouvir o elenco das mortes do dia. Não há vida na notícia, lançada sem desculpa nem pedido, a não ser uma morte diminuída e aumentada, um encontro para sempre impossibilitado, um grito inconveniente no meio da tarde azul, dado pela mulher na boca do jornalista.
E isso é bom, mau? um estado, numa determinada casa, numa dada rua, em certo quarto. Essa mulher agora passa em definitivo para um outro lugar e eu, alheia e afastada de uma vida que não parece minha na qual devo ou temo passar, escuto, e leio a manchete que logo se apaga da tela. Uma mulher foi encontrada sem vida numa casa na rua das Frigideiras.
Elisa Andrade Buzzo
Lisboa,
16/5/2019
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