COLUNAS
Terça-feira,
16/7/2019
Dor e Glória, de Pedro Almodóvar
Jardel Dias Cavalcanti
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Almodóvar é sensível às cores, aos objetos e aos mais profundos sentimentos humanos. É com esses elementos que ele tem criado seus filmes. Em Dor e Glória não é diferente.
O ambiente no qual os personagens transitam é marcado ora por cores fortes, que acentuam os seus sentimentos, ora por cores mais delicadas, que atenuam os dramas interiores dos personagens. Além das cores, há objetos como livros, quadros, xícaras, roupas, aparelhos domésticos que são devidamente focados pela câmera, compondo, assim, o espaço estético-existencial dos personagens, reforçando dessa maneira suas características psicológicas. A fotografia é impecável no tratamento desses elementos, aliás, em todo o filme.
Os sentimentos, em Dor e Glória, são os espaços fortes do filme, onde as experiências-limite traçam a linha do desenvolvimento de sua narrativa. A história da redenção precária dos personagens, envolvidos em dramas que os congelam em espaços sem saída, é o motor que fará com que os mesmos passem por um processo de realimentação criativa para voltarem a cumprir seu ofício, seja o de intérprete (como é o caso de Alberto) ou o de cineasta (como é o caso de Salvador).
No caso do personagem Alberto, após uma crítica do diretor sobre sua interpretação sob efeito de heroína (na época denominada de Cavallo em Madri), rompe-se o laço que os unia e que o leva ao aprofundamento no uso da droga e ao trabalho mediano como ator. Será no retorno da presença do diretor à sua vida, abrindo e fechando feridas, que retornará aos palcos.
No caso do cineasta, denominado Salvador (vivido por Antônio Bandeiras), suas dores terríveis por todo o corpo e, principalmente na coluna, constituem, junto com as feridas emocionais, uma forma de bloqueio criativo e emocional que o leva ao isolamento e solidão profunda. Da retomada dos cuidados sobre si e das lembranças dolorosas e/ou afetivas do passado - que o fará passar por um processo de convivência com o “retorno do reprimido” – é que tirará a matéria imaginativa para sua volta à escrita e às filmagens.
É reencontrando as feridas do passado, via memória, após o consumo de heroína - também uma experiência-limite - que o diretor retoma sua criação, já que a impossibilidade da mesma se torna uma de suas maiores angústias.
Nesse entremeio, o passado da infância retorna, no relato de sua relação com a mãe (vivida por Penélope Cruz) e da descoberta do desejo homossexual. O destino que aquela família pobre impõe ao garoto (o internato) e a vibração febril do desejo no desmaio da criança diante do belíssimo nu frontal masculino do pedreiro - que encarna a teoria freudiana da existência da sexualidade infantil – são dois elementos importantes na constituição dos dramas que se seguirão.
Da costura desses elementos à narrativa da vida presente do diretor vai-se fazendo o filme. Depois de resolver seu problema do passado com Alberto, o ator do seu primeiro filme, levando-o a encenar um texto autobiográfico que acabara de escrever, dá-se nesse momento o resgate também do seu amor do passado (frustrado pela relação tumultuada com seu parceiro, um drogadicto incurável que os leva à ruptura do relacionamento), que ao assistir à peça autobiográfica do diretor, encenada por Alberto, se vê ali envolto também com as duras questões do seu passado amoroso. Ao se reencontrar com Salvador, além de passar em revista sua relação com ele, revela-lhe que está casado com uma mulher, com filhos, e que sua única vivência homossexual de 3 anos foi com o diretor. Nesse encontro, selado por um vigoroso beijo na boca, mas que não os leva à consumação do ato sexual, por escolha de Salvador, mais uma porta entreaberta do passado se fecha.
Resta a Salvador a lembrança do seu último encontro com a mãe, perto de sua morte. Em um diálogo marcado com cobranças de ambas as partes - mais um “retorno do reprimido” -, refaz-se o percurso que se iniciou na infância. E da aceitação da impossível redenção, renova-se a energia criadora do diretor, que agora, numa cena anterior que é retomada para fechar o filme (a cena da mãe e do filho dormindo na estação), nos mostra que este filme que estamos vendo é o filme que marca seu retorno às filmagens, a partir do retorno das lembranças do passado, numa autobiografia (psicanalítica?) que nos faz pensar no valor da dor e do desejo, que constituem nossos mais importantes dramas pessoais, como componentes existenciais que abastecem a criação artística.
O tema do reencontro com as fomes originais do passado, principalmente da infância, se dá, finalmente, no reencontro com o quadro pintado pelo pedreiro que lhe apareceu nu, revelando-lhe o destino do seu desejo. Desse retrato de Salvador na infância, que agora lhe retorna, é que podemos pensar mais uma vez nessa espécie de reencontro consigo mesmo a partir das experiências interiores e que estão guardadas no mais profundo espaço da alma, esperando serem libertadas pela criação das obras de arte.
Jardel Dias Cavalcanti
Londrina,
16/7/2019
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