COLUNAS
Sexta-feira,
13/9/2019
7 de Setembro
Luís Fernando Amâncio
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No colégio em que eu estudei, estar na quinta série, atual sexto ano, era ter um compromisso cívico: participar do desfile de 07 de Setembro. Para nós, crianças de 10, 11 anos, era uma responsabilidade que recebíamos com indignação. Afinal, era feriado e tínhamos que vestir uniforme e ir para a escola. Não era um bom negócio. Alguns colegas, mais fáceis de se agradar, se davam por satisfeitos com o pão com presunto e queijo que recebíamos antes de ir para o centro.
No fundo, todavia, estávamos felizes com o feriado inusitado. Funcionava quase como um ritual de passagem, uma afirmação de que entrávamos na adolescência. Dava aquele orgulho de estar crescendo, que décadas depois viraria o desespero de estar envelhecendo.
Havia vantagens práticas. Uma semana antes do Dia da Independência, éramos liberados do último horário de aula para treinar o desfile. Estudantes de todas as turmas das primeiras séries colegial eram cuidadosamente distribuídos em filas, por ordem de tamanho, no campo de futebol da escola. Professores nos passavam noções básicas de marcha: o passo, os comandos (sentido!, direita volver!, esquerda volver!, meia volta volver!), o ritmo…
A fanfarra do colégio participava dos ensaios, alternando marchas militares com melodias tocadas no xilofone. Estou falando do final dos anos 1990, então o “Tema da Vitória” era quase obrigatório em qualquer manifestação patriótica. Na frente da fanfarra, iam as balizas, que eram, basicamente, as meninas bonitas da escola vestidas de paquitas e fazendo coreografias com varetas.
Após a semana de ensaios, chegava o grande dia. Ficávamos ali, reclamando pela demora, por não chegar logo a hora de desfilarmos. Sem perceber, estávamos nos divertindo. Um bando de adolescentes reunidos sempre arrumam o que fazer. Horas depois, cumpríamos a complexa tarefa de marchar pela principal avenida da cidade, com uma pequena multidão se espremendo nas calçadas para nos prestigiar.
Por fim, encontrávamos nossos familiares, que nos acompanhavam naquele rito de passagem. Aí, poderíamos esperar o desfile da escola de algum primo ou vizinho e, se estivéssemos realmente engajados no ato cívico, aguardaríamos o desfile dos militares. Minha família não era dessas, a fome apertava e retornávamos para casa.
Mesmo sendo uma criança nascida após a Ditadura Militar, recebi outras doutrinações patrióticas ao longo da formação escolar. Periodicamente, tínhamos que ouvir e fingir cantar o Hino Nacional. Inclusive, havia sempre a polêmica: bater palma depois do hino era desrespeito? Nunca houve consenso. Verde e amarelo, mesmo, a gente só vestia na época da Copa do Mundo. Só a pátria em chuteiras nos comovia.
Eram tempos sem o espectro da Escola Sem Partido. Ou seja, os professores de história podiam ensinar o que diziam os especialistas: que nossa formação como pátria ocorrera a partir da exploração da natureza por uma elite econômica, do genocídio indígena e da escravidão africana.
Também não havia a “ideologia de gênero”, essa lenda urbana que tanto amedronta os “cidadãos de bem”. Sexualidade era tratada em termos estritamente biológicos. Ou seja, víamos ilustrações no livro didático das transformações que explodiam por nossos poros. Enquanto isso, os meninos homossexuais eram isolados pelos colegas como leprosos de décadas atrás. Já os garotos que se vangloriavam por “passar a mão” nas namoradas eram um exemplo a ser seguido. Se fosse sem consentimento, era um gesto de coragem ainda mais valorizado.
São lembranças de mais de 20 anos, um passado envelhecido. O patriotismo em 2019 se tornou pauta eleitoral e os desfiles de 07 de setembro serviram, como nunca, de palanque. Houve governador desfilando em tanque de guerra, primeira-dama de vestido amarelo, criança no carro com o presidente...
Tudo isso enquanto a Amazônia queima em incêndios criminosos que beneficiam o avanço do agronegócio e do garimpo ilegal. Em Brasília, temos uma seleção de ministros lunáticos, defendendo os piores negacionismos da moda. Nessa onda, a censura avança sobre conteúdos que abordam temas de sexualidade, em polêmicas que explodiram justamente durante o feriado.
Ou seja, com o patriotismo sendo usado como cortina de fumaça para tanta coisa ruim, me resta a constatação de que aquele pão com presunto e queijo foi a melhor coisa que um desfile do Dia da Independência já me rendeu.
Luís Fernando Amâncio
Belo Horizonte,
13/9/2019
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