COLUNAS
Terça-feira,
8/10/2019
Rinoceronte, poemas em prosa de Ronald Polito
Jardel Dias Cavalcanti
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Como falar de uma escrita sem a obrigação de entendê-la? Como penetrar nesse entrelace de invólucros fixos que são esses poemas em prosa do livro Rinoceronte, de Ronald Polito, agora lançado pela Editora Quelônio?
As acentuações insólitas dos versos-frases de Rinoceronte parecem advir de uma escuta atenta de Berg, Webern e Messiaen. Pequenos grupos de elementos constitutivos se relacionam, sem que um deva obrigação ao outro. Veja-se os elementos do escrito “Às voltas”, onde a confluência é paradoxal, onde tudo que está à volta está longe, e se há dois é o encontro de desertos. Essa máquina-de-frases concatena os elementos díspares de deslocação espaçotemporal dos elementos à volta, numa circularidade infernal que termina no vazio.
Em cada um dos textos de Rinoceronte, o que está fixo não se define por uma identidade comum dos elementos, mas por uma variedade que nos faz perceber o estriado (de)composto de aglomerações de versos. E não adianta, a partir dessa variedade, fazer uma catalogação de ideias ou de objetos temáticos, lançando sobre eles uma rede furada de compreensão, que afinal será derrotada pelos efeitos de distância e proximidade que avançam como um trem descarrilhado sobre linhas quebradas.
Fragmentação, isolamento, comunicação antissináptica, redução de sentido, modulações como minas terrestres endereçadas à hermenêutica, redistribuição não cartesiana de séries decididamente paradoxais. A aranha tece uma teia onde as linhas não se encontram. Nada se comunica, numa espécie de mundo explodido. Nesse sentido, o que importa é mais a forma que o conteúdo. Não simplesmente o que se diz, mas como se diz.
Esse “método para ruir”, como o escritor diz em “Engrenar”, impede qualquer simetria, focalidade e até mesmo a lateralidade, ou “o que resta sem resto nem remissão”, como diz no texto “Um bocado”. Uma espécie de impossibilidades infinitas é o que garante essa escrita trans(contra)versal, onde tudo se dispersa, tudo explode, tudo se dissolve.
Se o “cão sem órgãos”, presente em Rinoceronte, nos remete ao “corpo sem órgãos”, também o “texto sem órgãos” torna-se capaz de existir e resistir à unificação de uma ideia num corpo-texto sem texto.
Essa multiplicidade difusa e heterogênea de versos-prosa, totalmente presente no livro de Ronald Polito, contraria nossa volonté de savoir. Esses textos inconstituintes celebram o disperso entrelaço de forças ocasionais indispostas umas com as outras. Toda possível potencialidade é anulada, quebrada na sua raiz, como uma contraestratégia de sentido.
Podemos falar de zonas de intensidade, isto sim, mas desterritorializadas, pois são apenas fluxos de força sempre em linha de fuga. Rinoceronte, por isso, torna-se incompreensível para os engajados nas causas do real, para quem as anomalias selvagens não contam tanto. A potência própria de um texto como “crítica da razão do texto”, como contraponto ao significado banal do entendimento, é a proposição de Ronald Polito.
Aqui não vale o conhecimento como uma compreensão preexistente do mundo (e da literatura). O Rinoceronte pesa porque oferece, ao contrário, um conjunto de forças-linhas irredutíveis umas às outras. O que conta não são os termos ou os elementos, mas o que há entre (between). Citando Deleuze, “uma linha não vai de um ponto a outro, mas passa entre os pontos, sem parar de bifurcar e divergir, como uma linha de Pollock”.
A ilustração acima, trabalho do próprio escritor, define melhor ainda essas linhas de força, pontiagudas, ameaçadoras, que se cruzam perigosamente sem direção determinada. Ou... em direção ao espectador.
Eis o Rinoceronte que Ronald Polito nos apresenta.
Para ir além
Cactos Implacáveis: entrevista com Ronald Polito, Lô Borges e a MPB e Livros de Ronald Polito.
Jardel Dias Cavalcanti
Londrina,
8/10/2019
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