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Quarta-feira,
6/11/2019
A Vida dos Obscuros
Marilia Mota Silva
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Quando assisti a Forrest Gump, há alguns anos, fiquei imaginando como seria essa história se o protagonista fosse brasileiro.
Para quem não sabe, o filme conta as aventuras de um cidadão com baixo quociente intelectual, considerado idiota, inclusive por ele mesmo. Sem ressentimento.
Levado pelas circunstâncias, pela cultura e estrutura da sociedade americana, ele percorre os grandes eventos que marcaram a História do país durante trinta anos. Apesar de sua deficiência, sua trajetória é marcada por realizações e sucesso.
Em A Vida dos Obscuros - título inspirado por um poema de Cora Coralina que ilustra as primeiras páginas do livro -, meu personagem é uma menina orfã, que também segue pela vida à mercê do acaso, da cultura e realidade social do nosso País.
Através dela, procurei falar do brasileiro do interior, que vive à margem do poder, distante dos centros de decisão e dos centros culturais. Ou vivia, até há pouco tempo, quando não havia internet, Google, redes sociais etc.
A narrativa passa pela construção de Brasília, Jânio Quadros, os militares, a inflação, as pequenas e grandes esperanças seguidas de fracassos inevitáveis. E termina nos dias atuais.
É uma reflexão sobre quem somos, o Brasil profundo e a cultura que nos define. Dito assim, parece ensaio, mas não é: são apenas estórias, lembranças emprestadas, ouvidas, impregnadas em nosso DNA, em nosso inconsciente coletivo. Ponho aqui uns trechinhos como exemplo:
"Relampo ia num trote ligeiro, pescoço levantado, sacudindo a crina, como se não sentisse o peso da carroça. Tia Elisa puxou a rédea com mão firme, 'ôa, sossega, cuizarruim, a Rose não vai fugir, não'. Rose era uma égua mansa, montaria do Tiãozinho. Tia Elisa ia falando alto pra eu ouvir: 'Se deixar, ele dispara e ainda vira a carroça. Cavalo inteiro é isso. Igual a esse Jacaré, vi bem o jeito dele."
* * *
"A cascata, os fios de água escorrendo de tubos PVC mal escondidos entre as pedras, a pintura desbotada dos anões de cerâmica: o cenário, romântico à noite, surgia patético à luz implacável da manhã.
Tancredo Neves tinha morrido. Aquela morte inesperada era como um riso de escárnio sobre nossas frágeis esperanças. Esperança que nos animava desde a campanha das "diretas já", esperança de que o país encontraria seu rumo naquela transição difícil."
*****
"O sol tocava de leve minha pele, dourava as gotinhas de orvalho que cobriam o capim, despertava o cheiro úmido da terra. A brisa passava rente ao chão, e o pasto se arrepiava ao seu contato, ondulando; a vida me trespassava, eu era eles, a poeira do sol, o orvalho, o capim."
Nota do Autor
A Vida dos Obscuros, na Amazon.
Marilia Mota Silva
Rio de Janeiro,
6/11/2019
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