COLUNAS
Quinta-feira,
23/1/2020
Paisagem interna agreste
Elisa Andrade Buzzo
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Deslizar na estrada, dando adeus ao rebanho de vacas castanhas douradas de sol. Traçar curvaturas na linha do destino, uma grossa coleira de couro com um sino, que se visualiza, já que o grilhão resplandece, que não se ouve, pois tudo é já muito distante, e desencontrado, mujido e repique desaparecem antes do som estalar nos ouvidos. Atravessar minas arqueológicas em Aljustrel, tracejar no olhar campos granulados de milho e azeitonas.
Flutuar na ponte, e abrir os olhos, e fechar, desistir do novo caminho e da chegada que se aproxima como linha a ser transposta, como cancela a ser levantada. Anonimamente, entrar na cidade, levitando como se do fado houvesse uma dança muito lenta. E os prédios tão baixos começam a aparecer do nevoeiro branco e azul-claro, afastando essa cortina e colocando seus rostos para fora, em boas-vindas calmas pois qualquer movimento brusco é capaz de transtornar a passageira em eterna convalescência.
Deixar o oceano, para encontrar um rio, que é mar, um mar, que é rio e nenhuma das duas coisas, só um estranho e calmo azul habitado por um navio abandonado, num cais esquecido. Esquecer as ondulações calmas, as estrias de água azul-turquesa, a espuma esbravejando calma nas rochas feridas, a agreste vegetação rasteira sagrense. Olvidar o azul mixado ao amêndoa, entornado por uma moldura de algas marinhas castanhas ondulejando, como pestanas vivas e comunicativas; esquecer, nunca, mas enterrar com essa terra mais areia porque esbugalhada, e fina, para se poder pisar em algo, nas sobras da própria ruína, para não ser engolida pela boca do oceano instalada no ponto mais derradeiro da península recortada.
Entrar em um ônibus, entrar, não, ser empurrada, pois os estrangeiros querem ver peixes, tirar fotos, macaquear pinguins em ambientes artificiais, alimentar almas e lontras escorregadiças. Sair, empurrada, adentrar por galerias de espinhas de peixe transparentes, iluminadas, concretadas. Redesenhar novamente um caminho protomarítimo, que deve se afastar da fundura querida do real oceano, mas um caminho em que há uma pegada de morte por todo lado, em esqueletos brancos, em palmeiras artificiais, no que já se sabe que não volta a encarnar, em barcos que não são navegáveis mas construções cenográficas onde homens se adelgaçam.
E surgir em um jardim atapetado de degraus, habitado por patos casmurros, pombas sisudas. Andar como quem nada encontrará, mas que ouve o primeiro latejar, o sopro do Bolero de Ravel, e nesse labirinto penumbroso surgirão pesados casacos, perucas brancas, o pastel de nata queimado pedido, a sopa, o vinho serão ainda mais despropositados, perversos. A comida, as gentes, entrando, dando encontrões, nas filas, nos banheiros, as tosses esgueladas, o lenço de pano fazendo malabarismos ao nariz enquanto os violinos esguaniçam, e o maestro dança um balé de movimentos egípcios.
No olhar-se no grande espelho da sala de concerto, cada personagem vai se imiscuindo, aqueles já quase esquecidos, de repente surgem na ponta das baquetas lânguidas e orientais das cordas, mas já num tom menor, como fantasmas transparecidos, mansas águas-vivas encantadoras de ratazanas, até a apoteose das notas finais em uníssono. Ser definitivamente sugada pela roda, alçada por guindastes. Então retornar à civilização terrestre e suas habitações de tocas enfurnadas, apegar-se à aparência e ao irrisório, ouvir o apito das operações das máquinas e o manejar de roldanas que pretendem carregar o peso do mundo e modelar o desenho das construções infinitas.
Elisa Andrade Buzzo
Lisboa,
23/1/2020
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