COLUNAS
Terça-feira,
24/3/2020
Os bigodes do senhor autor
Renato Alessandro dos Santos
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Manuel Antônio de Almeida escreveu um único romance em seus curtos 30 anos de vida, e Memórias de um sargento de milícias é um livro ímpar do romantismo brasileiro: é tão diferente dos outros romances do período que poderia ser aquela solitária estrela que, na bandeira nacional, fica isolada de todas as outras.
Enquanto no país sopravam os ventos ultrarromânticos, o livro, escrito por “um brasileiro” no formato dinâmico do folhetim, não recebeu do público o reconhecimento esperado, e imagino que o autor ― da mesma forma que uma novela da Globo sofra da influência do Ibope e dos comentários que vêm das ruas ― tenha aqui e ali padecido do mesmo mal. Certo é que ambos necessitam do público, e Manuel fez um romance divertido, cujo tom de comédia transparece por todo ele ― à exceção da última linha, repleta de melancolia e de tristeza, o que dá no mesmo. Voltaremos a ela.
É que a vida do brasileiro sempre foi dura, e, elásticos, acabamos por encontrar no riso uma maneira de animar o estômago; é o que faz o narrador ao pintar em tom de comédia os costumes na corte ― pinceladas que retratam as camadas menos favorecidas daquele período inédito da história do país: abertura dos portos, beija-mão da família real, Banco do Brasil. Vem então uma galeria de tipos e caricaturas: meirinho (funcionário da justiça), barbeiro, dona de casa, soldado, padre Don Juan, cigana e, em meio a eles, um ou outro personagem endinheirado, como D. Maria e um militar de alta patente que salva Leonardo Pataca. Faltaram os negros, preteridos pelo autor.
É o “tempo do rei” no romance, período que se estendeu de 1808 ― mesmo ano em que a Nona sinfonia estreou na Europa ― até a independência. O que queria Manuel ao situar o correr da ação exatamente nesse tempo, quando colocou Memórias de um sargento de milícias em circulação no início dos anos 1850? Mamede Mustafa Jarouche oferece uma possibilidade: embora o romance tenha sido publicado no período nacional de nossa literatura, a história, que se passa nos momentos derradeiros de quando ainda éramos colônia de Portugal, pode refletir a inércia que veio em seguida, naquele pós-independência que resultou no mesmo arroz e feijão no prato do brasileiro; ou seja, para os desvalidos, praticamente, nada mudou com a chegada do rei.
"O que o autor pretendeu dizer? Talvez, de forma irônica, ele estivesse insinuando que o Brasil de seu tempo (1852-1853) não seria lá muito diferente do Brasil no tempo de Dom João VI. Nesse sentido, as Memórias poderiam constituir uma espécie de sátira social, texto por meio do qual se condena a sociedade contemporânea. O governo vivia alardeando que o Brasil progredia a olhos vistos e que a situação colo-nial era um passado distante; já as Memórias de um sargento do milícias talvez estivessem dizendo o contrário: nossa situação está e esteve muito mal..."
O enredo de Memórias de um sargento de milícias é cheio de peripécias, recurso muito utilizado pelos folhetins, primeira encadernação do livro, como mencionado, quando saiu em A pacotilha, entre 27 de junho de 1852 e 31 de julho de 1853, ano eleitoral em que dois partidos se comiam em busca daquelas empadinhas à que os eleitos têm direito.
Desde a pisadela e o beliscão, passando pelo chute que Leonardo Pataca dá no filho — que o faz voar impossíveis oito metros —, e pelas diabruras da infância e da adolescência (coroinha, agregado à família de Vidinha, afrontas ao major Vidigal etc.) até chegar à “maturidade”, quando, premiado tanto com uma patente militar (sargento de milícias) como com o resgate do primeiro amor, o que o leitor encontra é, como Antonio Candido ensinou , um malandro, ou um pícaro, fôssemos galegos. Pícaro? O pícaro é o malandro, e no romance o malandro é Leonardo, ou, aos de casa, Leornardinho. Vê bem: um malandro de bom coração, alterando a rota do romance a toda hora, mas não com aquele tanto de peripécias como em Macunaíma. Ai... Que preguiça...
Porém, mais do que a malandragem, é o registro de um tempo importante que está nas Memórias de um sargento de milícias, algo capaz de oferecer ao moderno leitor um pouco do que era a cidade do Rio de Janeiro nas duas primeiras décadas do século 19, em um momento importante, isto é, quando o Brasil colônia passou a viver como metrópole, mas com o rei na barriga.
E, finalmente, aquela última linha do romance, que é? Brasileiro bom que era, Manuel sabia a maldade, o sorriso, a falsidade e a melancolia que iam na vida distraída cá embaixo, embaixo do Cruzeiro do sul, onde de uma alvorada a outra, reina esse surto de alegria que, em meio à queda para a tristeza, faz a gente acreditar que no fim tudo haverá de dar certo nesse nosso Brasil brasileiro, terra de nosso senhor, onde canta triste o triste sabiá.
Renato Alessandro dos Santos, 47, publica este mês mais dois livros: o volume 2 de Todos os livros do mundo estão esperando quem os leia - de onde esse texto sobre Memórias de um sargento de milícias foi retirado - e Lado B: música, literatura e discos de vinil, ambos publicados pela Engenho e arte. A ilustração é de Stênio Santos e foi criada especialmente para Todos os livros do mundo estão esperando quem os leia - volume 2
Renato Alessandro dos Santos
Batatais,
24/3/2020
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