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Terça-feira,
21/4/2020
Ourivesaria fantasista: Saramago nas alturas
Renato Alessandro dos Santos
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Não é uma peleja que se compare à construção do convento de Mafra, mas o leitor sofre e sua para chegar ao fim das 347 páginas de Memorial do convento, um dos primeiros romances de José Saramago e dos mais recentes clássicos perenes da literatura portuguesa.
Em certa altura da narrativa, a velocidade de leitura torna-se tão lenta quanto os carros de boi que levam uma pedra de mármore ao convento ― pedra tão colossal como o romance em si ― em si bemol ― porque Saramago era um fantasista ― um fantasista tipo Messi ou o patrício CR7 – e, mesmo as-sim, muitos ficam pelo caminho; provavelmente, o escritor quis pagar o leitor com a mesma moeda, fazendo-o sentir a dificuldade que os bois têm para carregar tal pedra durante dias e dias. Nessa hora, há aqueles que, decerto, arremessam longe o livro, desistindo do romance, talvez, para sempre. O que seria uma pena. Por três motivos: o enredo é, literalmente, fabuloso; o par romântico, Baltazar e Blimunda, isto é, Sete-Sóis e Sete-Luas, vive não apenas uma lição de amor das mais cativantes, mas a história de uma vida inteira, e que sobeja em Blimunda; por último, Saramago: um grande autor em ação, naquele que tem tudo para ser seu romance mais instigante... Porém, como o homem compôs tramas prodigiosas e cravejou sua prosa das mais preciosas pedras, então, só o tempo mesmo é que vai trazer notícias, um dia...
Motivo 1, o enredo
No século 18, o rei promete erigir um convento em Mafra, caso Deus lhe dê um herdeiro. Além da construção faraônica do edifício, há também Blimunda e Baltazar. Ela é capaz de ver dentro das pessoas e das coisas; é um raio X, uma endos-copia. Ele volta maneta da guerra e, enquanto não encontra Blimunda, vaga sem norte. Juntos, vão se tornar mais um casal célebre da literatura, como Romeu e Julieta, Pedro Bala e Dora, Dexter e Emma, Elizabeth e Darcy, Scarlett e Rhett, Simão e Teresa, e, em meio à construção do convento e ao amor de Sete-Sóis e Sete-Luas (B & B), há ainda uma ‘passarola’, engenhoca vintage que, em Saramago, imprime o elemento surreal à trama: a nave voa, em pleno século 18.
Motivo 2, o par romântico B & B
Blimunda tem uma qualidade (ou uma maldição) que a torna especial, e essa mesma característica deixa Baltasar ainda mais curioso em relação a ela, que o ama e vice-versa. Baltasar Sete-Sóis é um homem simples, de tosco trato, d’expressões grosseiro, e cuida de Blimunda como o jardineiro que ao cultivar a flor é, ao mesmo tempo, cativado por ela.
E quem chega ao capítulo derradeiro do romance ainda pode fruir de um dos parágrafos mais magníficos da literatura, em qualquer tempo e língua, trazendo justamente Sete-Sóis e Sete-Luas. Assim, como comparação apenas, é tão surpreendente como chegar ao final de outro grande romance, Terra sonâmbula, do africano Mia Couto. São dois momentos luminares da língua portuguesa. Agora, cuidado: se achar que um dia vai ler esse Saramago, então, não leia o trecho a seguir, que é o parágrafo final de Memorial do convento, mas, se você não se importa com spoilers, eis uma das mais bonitas passa-gens da literatura portuguesa contemporânea:
"São onze os supliciados. A queima já vai adiantada, os rostos mal se distinguem. Naquele extremo arde um homem a quem falta a mão esquerda. Talvez por ter a barba enegrecida, prodígio cosmético da fuligem, parece mais novo. E uma nuvem fechada está no centro do seu corpo. Então Blimunda disse, Vem. Desprendeu-se a vontade de Baltazar Sete-Sóis, mas não subiu para as estrelas, se à terra pertencia e a Blimunda."
Este “Então Blimunda disse, Vem” é coisa de outro mundo, não?
Motivo 3, Saramago
Autor, claro, não é narrador, e versa-vice; por isso, é Saramago quem sopra vida a seus personagens, enquanto lá no mundo ondem moram, o todo poderoso narrador segue aprontando das suas com eles, quando, por exemplo, surgem hete-rodiegéticos (3ª pessoa) e, de repente, debandam para o outro lado, tornando-se narrador e personagem, como se algo assim fosse a coisa mais normal em literatura – claro que, por esses dias, nada mais surpreende, e tudo é possível na literária arte, mas em 1982, nem todo mundo estava preparado para a criatividade do escritor. Parabéns, Sr. José! Tudo funciona muito bem, seja pela fábula, seja pela técnica narrativa. Há mais. Até mesmo um antepassado de Saramago é mencionado (como se fosse uma piscadela cúmplice ao leitor):
"(...) e este mulataz da Caparica que se chama Manuel Ma-teus, mas não é parente de Sete-Sóis, e tem por alcunha Saramago, sabe-se lá que descendência a sua será, e que saiu penitenciando por culpas de insigne feiticeiro (...)."
Saramago, esse argonauta da linguagem, já emitia sinais de originalidade e de frescor neste Memorial do convento. Vocês não acham, leitora e leitor?
A todos os amantes da literatura - aqueles que a amam, ancorados numa etimologia que traz um entusiasta apaixonado por algo que lhe é muito especial -, a chegada de um escritor como esse José é desses acontecimentos a ser comemorados. Até porque não é toda hora que um eclipse acontece, um feriado desponta no calendário, ou qualquer outra coisa assim, mas quando esse “evento” surge e ainda se manifesta na língua de Eça, de Gomes Leal, de Machado, de Craveirinha, de Rosa - Noel, Guimarães -, os leitores só podem agradecer e festejar. É que há algo de doce no país de Saramago, e sua literatura são pastéis de Belém com aquele sabor celeste que só os acepipes divinos têm.
Nota do Autor
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Renato Alessandro dos Santos
Batatais,
21/4/2020
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