COLUNAS
Segunda-feira,
11/5/2020
Literatura Falada (ou: Ora, direis, ouvir poetas)
Fabio Gomes
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Nestes tempos de quarentena em função da pandemia de Covid-19, quase todos os estados brasileiros - e também alguns municípios - lançaram editais emergenciais de socorro à classe artística, que viu sua renda desabar vertiginosamente logo no começo das (indispensáveis) medidas restritivas. Teatros foram fechados, deixando sem palco atores e músicos; também estão sem funcionar cinemas e livrarias, estas impactando no rendimento de escritores. Embora um ou outro dos editais emergenciais tenha se voltado apenas para a classe dos músicos, a maioria deles buscou contemplar também os profissionais da área de Literatura, possibilitando-lhes remuneração pela realização de recitais, oficinas e debates transmitidos via streaming, seja em vídeos gravados, ou mesmo em lives, seja publicando textos (em geral poemas) em redes sociais.
Nem todas as iniciativas visando valorizar a poesia no âmbito da quarentena, porém, são de iniciativa da esfera pública. Um projeto de destaque é o 40 Poemas, que iniciou as postagens no Instagram em 3 de abril e conclui em 12 de maio. Aqui o foco é trazer um(a) autor(a) lendo seu poema em áudio (outro diferencial num campo onde têm predominado os vídeos) - ouça por exemplo Mary Paes lendo "Devaneios Loucos".
Já no Mato Grosso do Sul, 14 poetas se uniram para criar o projeto Poema na Quarentena MS, que difere um pouco de outras iniciativas similares: primeiro, porque nos vídeos postados desde o dia 6 de maio um autor lê um texto de outro, num rodízio até se completarem os 14; segundo, porque o projeto não tem uma página própria, você localiza os vídeos no Facebook através da hashtag #poemanaquarentenams
De tudo que foi falado até agora, nada chega a ser novidade: nem a presença de poesia na internet, muito menos a gravação de autores lendo seus próprios textos. O que é raro sim são projetos onde um poeta lê poemas alheios. Além do exemplo sul-mato-grossense citado logo acima, o único outro exemplo que conheço é... meu: toda quarta posto um vídeo lendo autores brasileiros cuja obra esteja em domínio público, na série Rapidola Clássico; claro que podem haver outros cuja existência me escape, peço que quem conheça me indique para que eu possa incluí-los no texto. De todo modo, os exemplos que vou mencionar a seguir são de autores interpretando sua própria criação (não pretendo, porém, esgotar o assunto, dadas as dificuldades de se proceder a um levantamento que conseguisse abranger tudo o que se fez neste campo).
O que pode ser definido como novidade, não do pandêmico 2020, mas da internet em si, é a possibilidade de a poesia chegar ao público na voz do autor sem que seja necessário um suporte físico, como o LP ou o CD. Ou seja, havia a necessidade de o poeta precisar convencer uma gravadora a (ou ser convidado por uma para) lançar um disco falado, e nem é preciso dizer que a prioridade das gravadoras sempre foi lançar música e não poesia. Isso desde os primórdios da indústria musical brasileira, que deu seus primeiros passos em 1902.
O primeiro disco brasileiro a trazer um poema foi lançado em 1906: Edmundo Araújo interpretava "Se se morre de amor", de Gonçalves Dias. Outros discos de intérpretes se seguiram, até que em 1928 Olegário Mariano inaugurou no país a prática de poetas gravarem sua própria obra, registrando na Parlophon "As Duas Sombras", "O Soldadinho que Passa" e "Meu Brasil". Em 1945, quando a gravadora Continental retomou os discos de poetas, chamou novamente Olegário Mariano; a iniciativa durou até 1951 e incluiu também Manuel Bandeira e Ascenso Ferreira.
Estes três autores também fariam parte do grande momento da poesia em disco no Brasil: a coleção Poesias, da gravadora (também chamada por vezes de 'selo') Festa, cujo slogan inspirou o título deste artigo: a empresa iniciou suas atividades em 1955 apresentando-se como "a primeira editora brasileira de literatura falada em discos long-play de 33 R.P.M.".
Até 1958, Festa lançou 13 LPs reunindo 24 poetas, sempre com um autor ocupando um lado inteiro do disco. Foram 24 e não 26 porque Manuel Bandeira e Guilherme de Almeida estiveram presentes em dois discos. A lista de autores que gravaram pelo selo Festa abrange os principais nomes vivos da poesia brasileira na época (podemos citar Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles, João Cabral de Melo Neto, Murilo Mendes, Paulo Mendes Campos e Vinicius de Moraes). A empresa também lançou o poeta Abgar Renault, que só publicaria seus versos em livro em 1966, dez anos após sua estreia em disco. Houve ainda uma série de compactos literários lançados em 1963 e 1964, tendo como novidade o registro também de prosadores: a coleção trouxe Rubem Braga lendo crônicas e Erico Verissimo, fragmentos de sua monumental obra O Tempo e o Vento.
- Para a redação deste texto, foi de fundamental importância a leitura da dissertação de Mestrado em Meios e Processos Audiovisuais da Escola de Comunicações e Artes da USP Literatura e música: a trajetória da gravadora Festa (1955-1971), de autoria de Ana Paula Orlandi Mourão Delfim, onde colhi todos os dados sobre discos de poesia de 1906 a 1979. Sem a divulgação deste estudo na internet, eu não poderia ter escrito este artigo.
Fabio Gomes
Maceió,
11/5/2020
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