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COLUNAS
Quinta-feira,
14/5/2020
Alma indígena minha
Elisa Andrade Buzzo
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Caminhamos pelo chão que já foi o da noite anterior. Caminhamos, e ouvimos o ruído compassado de passos humanos, o frisson discreto de uma flor qualquer, o latejar longínquo de alguma máquina enclausurada. Pois assim somos: bichos atentos; e, por isso, gostamos tanto do silêncio e do escuro de floresta, de onde aprendemos a nos proteger e a acreditar.
Em um outro tempo, houvera chuvas fortes e demoradas; hoje, as ruas esvaziadas atestam a transição entre águas. Manchas acastanhoadas nas calçadas, como água em óleo preto, cujo diâmetro de limites imperfeitos desvanece. Há espelhos d’água tremulantes na passagem dos ventos trazendo mais nuvens, pequenas poças borbulhantes, nenúfares de folhas recortadas boiando nas lagoas artificiais.
Então cairá uma chuva sem peso nem ruído, apenas como uma bruma úmida na relva, nos animais e nas pedras. As coisas, incluso os desejos, atingirão o fundo da insignificância. Uma nova chuva aparecerá sem alarde, despregada do ar, já ciente de sua passagem, documentando as agonias, gotejando sua água delicada e vaporosa agora nas vidraças das moradias.
Mas olhemos bem, são setas finas. Acompanhemos esses traços em forma de flechas - são delgados, mas acutilados, direcionando-se com afinco a uma espécie de futuro de outras águas a serem vertidas no largo das memórias. A chuva são várias linhas retas que dançam e, em conjunto, apagam as exaltações e os barcos do mar. E pinta de branco-grafitado o encontro de terra e rios, resvalados, indecisos.
Como se ela sempre estivesse presente, mas apenas algumas vezes pudesse ser vista, como uma camada de transparência colada desde a fundação da Terra. É como se chovesse sem chover, como se estivesse numa pandemia sem ver os mortos. É como se se amasse sem se amar. Pior: é como se se amasse sem amor. Todos os homens são iguais perante a chuva.
Chuva em suspensão, que não molha, acalenta catástrofes, mantendo o mundo em um estado inconsciente de permanente alerta. Mas onde estão as chuvas fortes, onde estão as tempestades, onde estão os ventos, os raios e os trovões, as roupas e os cabelos encharcados, os cílios e os óculos molhados, a linha d’água subida a bordejar o limite do corpo? Por onde anda a terra da garoa?
Mais prudente entregar-se à segurança da monotonia, ao represamento das chuvas e dos sentimentos. E aquela tempestade, que se vê pela janela trovejando ou da qual se enfrenta os raios, de inundações, de cascatas saindo dos pneus dos carros estacionados nas ladeiras? Cortam-se os sentidos, os sonhadores são permanentemente dopados, do céu noturno recém-aberto não haverá estrelas. As placas das ruas gemem na formação dos redemoinhos. Receia, mas anseia uma chuva valente, alma indígena minha.
Elisa Andrade Buzzo
Lisboa,
14/5/2020
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