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Sexta-feira,
15/3/2002
Adaptação: direito ou dever da criança?
Marina Marcondes Machado
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Quem foi criança durante a década de sessenta, ou antes, talvez só
conheça o jargão educacional da palavra “Adaptação” como uma vivência de
pai e mãe, avô ou avó de crianças pequenas; e quem nasceu durante a
década de setenta, e adiante, talvez não se lembre (pode ter ido para a
escola muito pequeno), mas pais ou mães ou avós estiveram presentes nos
primeiros dias de aulas para “fazer a adaptação” deles, como se diz.
“Fazer a adaptação” foi um cuidado que o saber da psico-pedagogia passou
a introduzir nas rotinas das escolas, especialmente nas de crianças
muito pequenas (de zero a seis anos, as pré-escolas e creches). Faz
parte de um cuidado com a experiência emocional e afetiva de separar-se
de um tipo de vida para adentrar noutro tipo. Trata-se de um modo
equivalente a um novo “desmame”: o adulto entrega sua criança aos
cuidados de um sistema (professora, coordenadora, orientadora,
cozinheira, vigia, etc etc) e a criança passa a viver a rotina daquele
sistema, o que se contrapõe ao vivido até então -- usualmente um
cotidiano caseiro, mais baseado no ritmo próprio da criança e da sua
família. A “adaptação” serve, portanto, para que tanto a criança quanto
o adulto se acostumem paulatinamente e se entreguem a esse modo de
viver.
É preciso estar bem preparado para “fazer a adaptação”. Trata-se de um
procedimento mútuo: estão se adaptando a uma nova realidade tanto a
criança quanto seus pais... Por mais bem pensada e elaborada a decisão
de levar um filho pequeno para a escola, o fato dele espernear, não
querer ir, chorar muito e gritar na hora de dizer...”tchau”, são
vividos pelos pais de maneira dolorosa (e muitas vezes até contraditória
ou ambígua). O choro e a dificuldade inerente para se separar do modo
antigo de viver questiona até o fundo do poço as nossas escolhas
urbanas: a necessidade concreta de deixar as crianças em algum lugar
propício ao seu desenvolvimento, culturalmente aceito e bem visto, e na
maior parte das vezes, também caro prá chuchu. E há logo de cara, ainda
em casa, o sufoco de tirar o pequeno da cama, impingindo a ele a rotina
dura dos horários do relógio (“Que hora fecha o portão?”), sendo que a
criança pequena vive talvez numa outra temporalidade, aquela do sol e da
lua, do antes, do durante e do depois da chuva, da duração de uma onda
do mar, e tirá-la dessa sintonia muitas vezes significa uma intromissão
enorme.
Mas depois a criança se acostuma; ela se mostra mais maleável que nós, e
quer ser grande e ter mochila e lancheira, mas quando volta com uma
mordida marcada no braço ou um dentinho lascado por uma queda do
escorregador... são os pais que não se adaptaram ainda! Pois cada
pessoalidade tem seu grau de tolerância/intolerância, cada pai e cada
mãe suportam bem ou mal, num grau maior ou menor, a separação de seus
filhos pequenos e a distância dos cuidados durante o conflito ou a
queda. É fato que deixá-los na escola, por mais bem escolhida que seja a
opção educacional que o adulto fez, implicará sempre num grau de
institucionalização da vida. E talvez esse seja o fato mais doloroso, do
ponto de vista do adulto.
Do ponto de vista da criança, o que dói talvez seja a dúvida colocada no
que já foi, no vivido até então: não estava tudo bem ficar em casa com a
mãe ou a avó, passear com o cachorro e a empregada, passar um tempinho
no primo e voltar para almoçar e dormir?? E se a adaptação está
ocorrendo depois de um período de férias dos adultos, quanto pior! Não
era uma maravilhosa vida, e para todos!, morar numa casa na beira da
praia, fazer buracos na areia e boiar no mar? Como compreender esta
opção dos pais de lhe imprimirem a vida urbana e institucional de uma
hora para outra e de uma vez por todas? Como aceitar a mão e o colo de
uma desconhecida, a professora? Pagando uma mensalidade salgada nós
acreditamos garantir uma mão segura e um colo aconchegante para nossos
filhos pequenos. Ainda assim, sofremos.
Cabe lembrar que poder fazer essa opção é possível apenas para uma
minoria das crianças brasileiras. A maioria delas está em adaptação, no
sentido darwiniano da sobrevivência (ou morte) por toda sua primeira
infância. Muitas estarão institucionalizadas desde seu nascimento, e uma
das coisas mais tristes de se ver nesse mundo é um bebê
institucionalizado. Outras crianças estão ficando oito horas por dia em
creches, muitas das quais com estrutura frágil, com dificuldades básicas
de manutenção, sendo a principal delas: poucos adultos para grande
número de crianças. Isso faz ser preciso considerar sempre “o Grupo” de
modo a dar conta dos cuidados e de todas as atividades previstas.
Estarão essas crianças, então, em adaptação à falta de “Pessoalidade”
que tende a ser negada desde o primeiro dia de freqüência, no entanto
negada para que todos tenham de fato o direito de serem atendidos.
Da mesma forma que para os pais que podem pagar uma boa pré-escola, o
serviço prestado tem um custo financeiro alto, também para o Estado boas
creches devem implicar em investimento quantitativo e qualitativo:
dinheiro e recurso humano. Porque, se todas as crianças pudessem ter um
bom começo, superariam as inúmeras fases de adaptação que se
apresentassem a elas, e diante da experiência relacional da mão segura e
do colo aconchegante, se tornariam aptos a dar um salto, digno, à
categoria de cidadãos. Para que, anos depois, sejam eles mesmos pais e
educadores conscientes de suas opções, deveres e direitos em relação às
crianças ao seu redor.
Marina Marcondes Machado
São Paulo,
15/3/2002
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