COLUNAS
Terça-feira,
14/7/2020
Um grande romance para leitores de... poesia
Renato Alessandro dos Santos
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Acabei de ler Os detetives selvagens. Dizer que é o Ulisses ou o Visões de Cody de Roberto Bolaño seria exagero; ao menos com Joyce, embora o romance de Kerouac não fique atrás. A leitura levou dias, semanas, meses, talvez até mais de um ano. Lia-o e ia intercalando-o com outras páginas. Não tinha pressa. Vieram obrigações inadiáveis, projetos e outros arcabouços, mas, hoje, acabei de ler Os detetives selvagens, de Roberto Bolaño.
Quando terminei a leitura, deitado que estava, ouvindo The rise & fall of the third stream, o livro foi encaixar-se entre meu queixo e meu peito. Mirava a parede branca, enquanto a visão periférica não se esquecia da janela à direita – janela cuja imagem, neste momento, traz pra mim, num relâmpago, a última página de Os detetives selvagens, e chegar ao last but not least parágrafo de um romance, brindado pelo autor com o desenlace surpreendente que ele nos dá, levantando a taça, é algo que a literatura sabe oferecer como nenhuma outra forma de expressão artística. Lembrei de uma leitura recente de Eça (A relíquia), mas seria uma comparação disparatada não fosse apenas no sentido de atrelar duas obras que oferecem uma recompensa, um brinde à saúde do leitor, congratulando-o pela viagem. É que Teodorico Raposo, prestes a despencar, vive aquele clímax queirosiano que Eça tão bem sabia oferecer aos leitores.
Daqueles quebra-cabeças que, com a última peça, fazem sentido, a vereda de Os detetives selvagens expande-se por 622 páginas e é dividida em três partes. A primeira é narrada por Juan García Madero, estudante de 17 anos que entra para o grupo dos reais-visceralistas – poetas que se organizam ao redor de dois rebeldes: Arturo Belano e Ulises Lima. São os principais personagens do romance de Bolaño e são, também, dois eclipses sombreando toda a segunda parte não mais narrada por Madero, mas por nada menos que 50 personagens que, na sucessão de depoimentos, vão dando pistas sobre o paradeiro de Belano e Lima. Haja alteridade. Se a primeira parte ocupa-se dos dois últimos meses de 1976 e passa-se no DF (Distrito Federal), no México, os 50 personagens cobrem um período que vai de 1976 a 1996 e estão também na Espanha, nos EUA, mas principalmente no país da tequila, dos tacos e de Octavio Paz.
A última parte retorna, exatamente, ao fim da primeira, e encontramos Belano, Lima, Madero e Lupe fugindo de um cafetão e seguindo para os desertos de Sonora, no México. Durante pouco mais de um mês, eles estarão em busca do paradeiro de Césarea Tinajero, poeta que, supostamente, desapareceu numa bruma de mistério, sem mais nem menos, feito Rimbaud. Foi ela ícone dos visceralistas originais, grupo vanguardista de poetas dos anos 1920 – e, de supetão, está invertida a fórmula de se contar uma história de detetives, porque, embora o leitor tenha de unir as pontas, como em toda boa narrativa de mistério, não é um crime que motiva todas as peripécias que a última parte deixa, mas – sério – entender o que está acontecendo. Não ri, leitora. Porque há na narrativa de Bolaño todos os indícios de que o autor, cirurgicamente, sabe o que faz e, por isso, não faz sentido desistir do virar de páginas, mesmo que a duração leve meses. Genial Bolaño, pois é justamente a terceira parte que ilumina tudo, e é aquela surpresa que cada descoberta traz que premia os leitores ao final, e só tal pinhata já seria motivo de sobra para se deixar levar por cada uma das centenas de páginas do romance.
É uma das últimas grandes narrativas deste limiar entre a cultura dos livros e a rapidez tecnológica de novas plataformas e formas de leitura, algo que, nessa modernidade apressada, pode inviabilizar a produção mais caudalosa dos romancistas atuais, mas que, de Bolaño, não recebe concessão, que o digam as imperdíveis 852 páginas que outra de suas obras, 2666, tem. É um autor para leitores de fôlego; é um autor já falecido precocemente mas que pôde deixar um espólio onde mais livros vêm surgindo, para a alegria de todos os leitores que – caminhando por Os detetives selvagens e admirados da destreza técnica do autor e das possibilidades criativas que sua literatura oferece – têm consciência de que, a cada página virada, restará, um dia, a última de Bolaño a ser sorvida ― sorvida com, com pleonasmo literário e tudo, contente contentamento.
Bolaño vive; em seus livros, Bolaño vive, para admiração de leitores que mantêm acesos projetos de leitura capazes de esgotar toda a literatura dele. Toda. Toda uma literatura que é capaz de capturar nada menos que os subterrâneos de nossa vida contemporânea.
Fica assim então. O autor chileno espera ali, nos intervalos de leitura de Os detetives selvagens, esse romance engenhoso que trata, acima de tudo, de... poesia – sim, poesia – aquela espécie mágica de versos cuja verve remete às mais altas esferas do pensamento, lá onde a imaginação vive à altura de arranha-céus – fruto das mais “soberbas pontes e edifícios”, como sugere Drummond a respeito do engenho e da arte de toda a gente naquele admirável verso de Claro enigma.
Nota do Autor
Renato Alessandro dos Santos, 48, é autor de Lado B: música, literatura e discos de vinil, de Todos os livros do mundo estão esperando quem os leia (volumes I e II), de O espaço que sobra, seu primeiro livro de poesia (todos publicados pela Engenho e arte), além de outras obras. A ilustração acima é de Rodrigo Caldas e foi feita especialmente para o volume 2 de Todos os livros do mundo estão esperando quem os leia.
Renato Alessandro dos Santos
Batatais,
14/7/2020
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