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Terça-feira,
8/9/2020
A pintura do caos, de Kate Manhães
Jardel Dias Cavalcanti
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“Porque não surrupiar dos outros se isso nos leva mais longe?” Esta frase de Francis Bacon se aplica à obra de Kate Manhães. Seu trabalho é nitidamente permeado por boas influências que a faz prolongar efeitos já constituídos em outras obras. No caso, podemos pensar na obra do próprio Francis Bacon e artistas como Picasso, Lucien Freud ou Fabricius Nery (tal como Kate, artista de Campinas). O diálogo é promissor. E vamos usar a palavra diálogo, tal como o próprio Bacon fez, por exemplo, alinhavando de Picasso, Velásquez e Rembrandt ao cinema de Eisenstein em seu trabalho.
Kate Manhães vive em Campinas, interior de São Paulo. Já desenvolve seu trabalho de pintora à décadas. Em geral, sua pintura reúne temas à partir de reflexões existenciais e sociais, aliados às questões formais que têm seu ponto forte na pintura de tradição modernista (Picasso, Lucien Freud, Francis Bacon e os pintores campineiros Egas Francisco e Fabricius Nery).
Do ponto de vista formal, seu trabalho tem como elementos centrais a fragmentação do corpo humano e geometrias aproveitadas dos cenários e como “cenários” onde as imagens se concentram. A geometria, no entanto, não cria espaços naturalistas, mas se porta como uma espécie de estrutura que tenta manter em pé o caos das imagens que centralizam boa parte de suas telas.
O corpo humano é desconstruído ou deformado segundo princípios que vão da ironia ao puro desgaste de uma ideia, o que numa pintura expressionista acabaria por se constituir numa narrativa mais clara. Ao contrário da vertente expressionista (caso de Egas Francisco), que expande o drama das imagens em cores e gestos largos buscando ampliar sua expressão narrativa, aqui, no caso de Kate Manhães, o que pesa é uma desconstrução pós-moderna da narrativa, produzida pela fragmentação e desconexão direta da imagem em todos os espaços da tela.
Mesmo a geometria constante não produz sentido objetivo quando busca delimitar os espaços onde a ação acontece. Os espaços são, assim, fantasmagóricos, embora sustentem a tela para que os pedaços dos corpos não voem para além deles mesmos.
Na tela que comentaremos, denominada Espectador do Caos, a conjunção de referências - mais objetivamente provindas de Picasso e Francis Bacon como influências mais diretas -, a artista fragmenta aquilo que já era fragmentado nas suas referências e aquilo que não era fragmento (como, talvez, a presença de Lucien Freud) é levado ao paroxismo do desmembramento, refazendo-se num misto caótico de Guernica (note-se a referência nos braços caídos no primeiro plano central) e Bacon.
Se o tema da tela é o caos, ele se expande para além de uma possível interpretação. Um elemento interessante na tela é que não só o personagem que observa o casos (ele também com o rosto fragmentado, sendo visto de três ângulos diferentes) é colocado nessa posição, mas também nós, aqui, somos colocados impunemente na posição do mesmo observador desse caos de corpos em fragmentos.
A incapacidade de dar sentido ao que se observa, tantos são os fragmentos, é o que revela a situação (do mundo de hoje?) da impossibilidade de nomear o real a partir de uma certeza unitária. Mesmo o círculo que envolve o esqueleto, como uma espécie de lente de aumento, não consegue conectar o sentido desse fragmento ao restante das imagens. Ele apenas amplia a ideia das partes, sendo um fragmento dentre os tantos outros aqui apresentados. Não adianta revelar o interior do corpo, não há sentido a ser revelado nessa operação anatômica, a não ser o de uma nova divisão do corpo humano em mais partes.
Aqui, se se quiser ampliar o discurso sobre a obra, pode-se falar em fragmentação da verdade, da narrativa, da história e a consequente intraduzibilidade do sentido do corpus do existir contemporâneo.
A presença de um urubu (aqui em cor azul) também como um espectador dos fragmentos humanos, esperando o apodrecimento deste mundo para efetuar seu devoramento, é bastante sintomático de uma apresentação alegórica do homem na atual conjuntura como apenas um resto humano na expectativa de sua degeneração futura.
Se a tela pretende-se uma nova Guernica, aqui o esfacelamento vai além da referência histórica (no caso da obra de Picasso, o bombardeio de uma cidade espanhola pelos fascistas). O que Kate propõe é uma interpretação mais geral da humanidade. Quem está destroçado é o homem como um todo, ou o que havia de humanidade no homem.
E a nós espectadores, resta o que? Assistir o ocaso da humanidade.
Para ir além: para acessar outras obras de Kate Manhães visitem no instagram: atelieoraculo
Jardel Dias Cavalcanti
Londrina,
8/9/2020
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