COLUNAS
Terça-feira,
19/3/2002
Intenso, lógico e fértil
Rafael Lima
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“Cor em arquitetura deve ser intensa, lógica e fértil”
Antoni Gaudí
Um trecho comum em qualquer resumo biográfico de Antoni Gaudí i Cornet destaca o período em que, combalido por febres reumáticas na infância, perdeu aulas e passou muito tempo observando pedras, animais e plantas enquanto se recobrava. Em meados do século XIX, na província de Reus (Catalunha), ainda não havia televisão, romances policiais ou qualquer tipo de subterfúgio que povoasse o sedento imaginário infantil. As cores, texturas e formas naturais foram suas revistas em quadrinhos, referências perenes que carregou – e retratou - pelo resto da vida.
Gaudí concluiu seus estudos básicos em Reus e depois mudou-se para Barcelona. Aos conhecimentos de arquitetura, somou cadeiras de Filosofia, História, Economia e Estética, tendo em mente o quanto injunções políticas e sociais interferiam na estética das formas. Além disso, freqüentou oficinas, travando contato com artesãos, ferreiros e carpinteiros, e expandiu seu conhecimento para áreas de engenharia civil, como a resistência de materiais, abrangendo áreas menos estudadas da Arquitetura.
Graças à pujança da indústria têxtil, Barcelona florescia em meados do século XIX: a expansão urbana casava com a invasão dos lares por aquelas coisas que passariam a representar a modernidade – telefone, luz elétrica, gás encanado –, tornando a vida cotidiana de um plebeu da classe média mais confortável, prática e limpa do que a de qualquer rei Luís algarismo, duzentos anos antes. A expressão política e cultural dessa nova vitalidade foi conhecida como Renaixença.
Graças ao seu relacionamento com magnatas, particularmente Eusebi Güell, amigo pessoal por toda a vida, Gaudí pôde executar um sem número de obras com enorme liberdade criativa e experimental. Grande parte é hoje patrimônio da humanidade, constituindo um roteiro turístico quase pronto em Barcelona. Por uma questão do que se chamará aqui intimidade, esta coluna vai se restringir a 3 obras: o Palau Güell, a Casa Milá e, como não podia deixar de ser, a Catedral da Sagrada Família.
Um palácio no meio do pardieiro
Apesar do crescimento de Barcelona, Eusebi Güell Bacigulapi decidiu estabelecer sua residência nas propriedades da família do centro antigo da cidade. Nascida na Plaza Catalunya, Barcelona desceu em direção ao mar via La Rambla, sua rua mais famosa. Mas como qualquer morador de centro urbano sabe, esse movimento centrípeto de ocupação é natural, afastando progressivamente os moradores do local de sua fundação. Até que haja uma iniciativa para recuperar os prédios históricos - em geral, com propósitos turísticos como houve no Recife Antigo - a tendência dos logradouros mais antigos é abrigar a população sem recursos, isso quando não fica abandonada. Com Barcelona não foi diferente, e o Carrer Nou da La Rambla, transversal à La Rambla, tinha por vizinho de Güell o mais famoso bordel da cidade. Mais do que erguer uma suntuosa habitação, Gaudí tinha por missão melhorar a reputação da região.
O Palácio Güell é uma construção relativamente alta, em uma rua tipicamente medieval, leia-se: estreita – por isso é tão raro encontrar uma boa foto de sua fachada; mesmo no alto verão a inevitável sombra produz o que se chama em fotografia de luz podre, a que borra o objeto clicado. O metal retorcido nos portões, de forma inusitadamente parabólica, ao redor da letra G, serve para filtrar a luz externa, mas a imagem que mais rápido vem à mente é a de um corte de repolho (ou qualquer legume folheado). A grande magia de Gaudí no projeto deste palacete em meio ao caos foi o aproveitamento racional do exíguo espaço – apenas 22 por 18 metros – e o uso da iluminação natural para dar a ilusão da amplidão.
Isso é obtido com o uso de escadas em espiral, e janelas que transmitem a luz incidente a norte e a sul. Há também diversos ambientes reversíveis, tal como uma capela que se converte em salão de baile (com direito a órgão), coligável à sala de jantar adjacente. As formas da natureza se manifestam aqui e ali, surpreendentemente: colunas de tijolos em forma de cogumelos ou árvores sustentam as estrebarias; vegetais de ferro forjado decoram o quarto de Eusebi Güell; a textura da palha trançada aparece na decoração em madeira do teto das salas de visita. Mas é no terraço que Gaudí dá vazão plena à sua criatividade, na decoração das chaminés com trencadís – cacos de azulejos, dispostos em mosaicos, que se tornariam uma de suas marcas registradas – tarefa que ele executava pessoalmente nas construções. Não é por acaso que, atualmente, quando se descobre um baiano ou um carioca decorando suas casas com sucata, ele ganhe o apelido de Gaudí carioca.
Uma casa das formas do mar
A Casa Milá foi erguida em um quarteirão do bairro planejado do Eixample, portanto sem as restrições espaciais do Palau Güell e, como não poderia deixar de ser, desrespeitando o rígido gabarito da região – Gaudí recusou-se a corrigir uma coluna que invadia a calçada em um metro, e foi ameaçado do corte da coluna pelas autoridades. Gaudí disse que capitularia, mas colocaria uma placa ali explicando o motivo do corte. Acabou ficando como estava.
Última construção de engenharia civil à qual se dedicou, a Casa Milá é um assombro de movimento e fluidez em meio aos ângulos retos dos prédios de apartamentos de aluguel comuns – a idéia de Pére Milá, quando chamou o arquiteto para projetá-lo. A fachada em pedra – que lhe valeu o apelido La Pedrera - de formas onduladas, desenhando um perfil contínuo, contrasta solidez e dureza dos materiais com a suavidade e movimento das formas, e deve ter inspirarado o pintor Salvador Dalí a dizer que “Gaudí construiu uma casa com as formas do mar, representando a arrebentação das ondas. Outra casa é feita da água plácida de um lago”. À propósito, o estilo único de Gaudí, impossível de ser enquadrado em qualquer escola, já foi descrito como “uma mistura de neo-Gótico e Art Nouveau, mas com elementos cubistas e surrealistas”, esta última, exatamente a linha de Dalí.
Aqui, a elegância das soluções estruturais se manifesta na amplidão dos espaços, já que quase não há elementos de sustentação; apenas os muros estruturais adjacentes à escadaria. Assim, a redistribuição dos espaços internos dos apartamentos é facilitada pela realocação das paredes, já que não é necessário respeitar muros de sustentação. A Casa Milá é administrada por um banco, hospedando um centro cultural e mantendo em exposição permanente um andar inteiro, completamente decorado como um apartamento do início do século, ambientando o visitante ao tempo da construção das principais obras de Gaudí. No telhado, novamente, chaminés e decoração com trencadís.
No último andar de La Pedrera existe uma ampla exposição de croquis, plantas, maquetes e fotos, onde se pode conhecer e investigar o processo criativo de Gaudí - uma coleção de slides evidencia a semelhança entre linhas e texturas de seus trabalhos e formas e cores da natureza. Uma maquete exemplifica seu método originalíssimo de projeto: uma série de barbantes e pequenos pesos amarrados, proporcionais aos arcos e cargas que teriam que sustentar, numa espécie de teia de aranha do projeto. Deixados pender sob a ação da gravidade, esses barbantes assumem formas de catenárias, que, invertidas com o auxílio de um espelho, mostram o exato formato que os arcos deveriam ter para sustentar as estruturas. Se alguma dúvida sobre o brilho de Gaudí ainda persistia na mente do visitante, ela se desfaz ao perceber a eficiência deste método. Gênio, ponto.
A Bíblia em pedra
Dizer que El Temple Expiatori de la Sagrada Família ainda está em construção 115 anos após seu início pode dar a dimensão de sua grandeza, mas não reproduz o impacto em alguém que acabou de sair da estação mais próxima do metrô ao ver as torres da entrada principal, que mais parecem feitas de areia e conchas, se erguendo a 170 metros do solo, o pescoço todo vergado para trás, e a espinha se curvando para olhar o topo. É como o chuá dos pratos ao fim de uma sinfonia, um daqueles que o percursionista fica horas concentrado para fazer. Um monumento sagrado, mas colorido com um parque de diversões e inesperado como um susto. Imponente como as igrejas góticas - foi planejada como uma basílica de 5 naves - tinha por fim enaltecer o triunfo da Igreja Católica, em tempo de queda de popularidade. Homem religioso, Gaudí foi celibatário toda a vida e está em processo de beatificação no Vaticano, atualmente.
Os claustros, utilizados para procissões, isolam o ruído das ruas; os arcos externos, que tradicionalmente sustentam o peso da construção em igrejas góticas comuns foram substituídos: Gaudí não acreditava que eles fossem a solução definitiva para a sustentação das cargas, até mesmo por estarem expostas à deterioração das intempéries. Ao invés deles, o peso ficou sustentado por colunas em de material mais resistente, combinado com abóbadas hiperbólicas, produzindo o efeito de uma floresta. As torres têm perfil parabólico, ocupando-se o espaço oco das escadas com sinos tubulares. Claro que muito disso apenas prepara o palco, como um roadie, para o espetáculo das fachadas mesmerizar os olhos do crente.
Já foi dito que a Sagrada Família pode ser considerada uma Bíblia em pedra, haja vista a variedade de ícones católicos em sua fachada: há Adão e Eva, o nascimento de Cristo, os 12 apóstolos, além de uma infinidade de espécies animais e vegetais. À maneira daquele militar no filme Mediterrâneo, Gaudí também emprestou os rostos de ajudantes, e serventes aos personagens moldados em gesso. Há detalhes e mais detalhes para se perscrutar com tempo de sobra na parte externa da Sagrada Família, uma verdadeira catedral do século XX, uma daquelas obras monumentais capazes de extrair fé do mais renhido dos ateus.
Mas afinal, por que Gaudí?
Este ano comemora-se seu aniversário de 150 anos. A província de Reus colocou um website no ar e várias comemorações estão programadas para Barcelona, sua herdeira maior.
Para ir além
A maior parte das informações desta coluna foi retirada deste site.
El Temple Expiatori de la Sagrada Família (página oficial)
La Rambla - na Time Out e no Lonely Planet
Barcelona - no Guia Lonely Planet
Homenagem de Reus (cidade natal de Gaudí)
Modelo em 3D da Casa Milá
Fotos variadas da Sagrada Família de La Pedrera
Barcelona - Robert Hughes, Cia das Letras, 1995
Rafael Lima
Rio de Janeiro,
19/3/2002
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