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Terça-feira,
20/10/2020
A redoma de vidro de Sylvia Plath
Renato Alessandro dos Santos
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O que quer uma poeta, utilizando um pseudônimo (Victoria Lucas), ao escrever não um livro de poemas, mas um romance? É importante mencionar que a poeta em questão é Sylvia Plath e, como sabemos, seu último ato foi enfiar a cabeça dentro de um forno, depois de ligar o gás, enquanto seus filhos pequenos dormiam no quarto ao lado. O que quer? Após esse irremediável xeque-mate a favor da Morte, seus poemas passaram a ganhar mais e mais leitores: uns mais preocupados em entender a poesia em língua inglesa da segunda metade do século 20, outros em compreender o que se passava pela cabeça de Sylvia Plath, uma vez que versos seus podem ser lidos pelo viés biográfico. Um filme como Sylvia tem de ser visto por quem se interessa por poesia e por Sylvia Plath; já o romance A redoma de vidro é um convite para quem deseja responder a pergunta que abre este parágrafo.
"Sentia-me boba e muito vazia, como o olho de um furacão deve se sentir ao mover-se apaticamente em meio ao tumulto ao seu redor."
Acompanhando a trajetória de Esther Greenwood, personagem principal de A redoma de vidro, vamos parar no beco sem saída que é imaginar o imenso céu nublado que deve ter sido a cabeça de Sylvia Plath em seus momentos agudos de depressão. Da metade da narrativa em diante, Esther entra numa espiral cada vez mais evasiva e passa a agir como uma pessoa que necessita de ajuda. Se não deve ter sido fácil ser Sylvia Plath, não é fácil para Esther ser Esther Greenwood: tentativa de suicídio, morte do pai, mãe autoritária, depressão, perda da virgindade, dificuldade para escrever, ou seja, situações evocadas no enredo que, num átimo, confluem para a biografia da autora – possivelmente, pois o artifício literário é justamente o de confundir o leitor.
Não é preciso muita esperteza para descobrir que há piscadelas autobiográficas no romance; não é por acaso que Sylvia e Esther têm nomes com o mesmo número de letras. É mais um capítulo da eterna questão envolvendo o quanto da vida de um escritor encontra-se narrada em sua ficção, se é que isso importa, enquanto na batcaverna a vida da poeta, e não apenas seu trabalho, segue interessando à posteridade. Embora o caminho não seja esse, para quem está ciente da história trágica da autora, fica difícil ler A redoma de vidro sem se desvencilhar da confusão biográfica que certas passagens trazem - como a tentativa de suicídio, quando Esther, após ter tomado todas as pílulas que conseguiu surrupiar da mãe, fica inconsciente por dias dentro de um buraco em sua própria casa.
"Depois desci e fui para a cozinha. Abri a torneira e enchi um grande copo d’água. Peguei a água e o frasco de pílulas e fui para o porão. Atrás do aquecedor a óleo havia um vão escuro na parede, à altura do meu ombro, que se transformava em um respiradouro coberto, entre a casa e a garagem, a perder de vista. Esse respiradouro fora acrescentado à casa depois de cavarem os alicerces e construído sobre essa secreta fenda com chão de terra. Algumas achas de lenha, velhas e apodrecidas, tapavam a boca do buraco. Afastei-as um pouco. Depois deixei o copo e o frasco de pílulas lado a lado, sobre a pilha de lenha, e tentei alcançar esse vão. Levei um bom tempo para me enfiar nele. Por fim, depois de muitas tentativas, consegui e rastejei para dentro da escuridão como um duende. A terra parecia macia sob meus pés descalços, embora estivesse fria. Fiquei pensando quanto tempo fazia que aquele lugar não via sol. Então coloquei as achas de lenha pesadas e poeirentas, uma depois da outra, diante da boca do buraco. A escuridão era grossa como veludo. Estendi a mão para o copo e o frasco, e cuidadosamente, de joelhos, a cabeça baixa, rastejei até o ponto mais distante. Teias de aranha roçavam meu rosto com a maciez de uma mariposa. Enrolei-me em minha capa preta como se fosse minha própria sombra, abri o frasco de pílulas e comecei a engoli-las depressa, entre goles de água, uma, depois outra, depois outra... Nada aconteceu a princípio, mas ao me aproximar do fundo do frasco luzes vermelhas e azuis começaram a acender diante dos meus olhos. O frasco escorregou de meus dedos, e eu me deitei. O silêncio transbordava e revelava seixos e conchas, e todos os destroços da minha vida. Então, à margem da visão, o silêncio começou a encolher e, envolvida por uma grande onda, mergulhei num sono profundo."
Por que Esther quis se matar? No ano anterior, ela havia partido para um estágio em Nova York na revista feminina Ladies’ Day; lá, entre festas e outros acepipes sofisticados, não deixa de se sentir uma aresta mal aparada, um desbotado peixe fora d’água, gravitando à margem de suas colegas, às quais não suporta. Além disso, Esther é uma garota que não sabe lidar muito bem com seu corpo, culpa de uma época em que o sexo era uma questão mal resolvida.
"Quando eu tinha dezenove anos a pureza era um grande assunto. Em vez de o mundo ser dividido entre católicos e protestantes, ou entre republicanos e democratas, ou entre brancos e pretos, ou mesmo entre homens e mulheres, para mim o mundo estava dividido entre pessoas que tinham dormido com alguém e pessoas que não tinham, e essa me parecia a única diferença significativa entre um ser humano e outro."
Numa noite, após ser apresentada a um rapaz chave-de-cadeia, e sem perceber muito bem onde estava se metendo, Esther quase é estuprada num parque. Aumentam os problemas, um a um. Dias depois, com a recusa de sua inscrição para um curso de férias, a vida de Esther entra em parafuso, o que a leva à depressão e, em seguida, à tentativa de suicídio. Seguem-se internações em clínicas de recuperação, até a volta para casa, onde tudo incomoda: da vizinha bisbilhoteira àqueles que esmiúçam sua vida, forçosamente. Com a ausência de euforia, chega a solidão, como uma caraminhola sorrateira que deixa a depressão entrar porta adentro, e tudo é silêncio.
Na ficção, a tentativa de suicídio, o internamento numa clínica psiquiátrica e, como um céu azul, o renascimento para a vida, sucessivamente, fazem com que ela deixe o fundo do mar para emergir quase sem fôlego em busca de ar, numa analogia que infelizmente na vida da autora não aconteceu.
Bebês em forma de picles
Muito à vontade na criação de imagens que assombram o leitor, Sylvia recorre a comparações num ritmo devastador, parágrafo por parágrafo. O assombro fica por conta da imagem recorrente de um “bebê em conserva”, um feto num recipiente com formol. Não poderia ser diferente: por dentro, a redoma de vidro não deixa de conter o bebê cuja vida não vingou. “Se houvesse um acidente na estrada ou uma briga na rua ou um bebê em conserva num vidro de laboratório”, diz Esther, “e eu pudesse olhar, parava e olhava tão fixamente que nunca mais esquecia”. Em outro momento da narrativa, ela diz:
"Mesmo sabendo que devia estar agradecida à senhora Guinea, eu não conseguia sentir coisa alguma. Se ela tivesse me dado uma passagem para a Europa, ou para um cruzeiro ao redor do mundo, não teria feito nenhuma diferença para mim, porque onde quer que eu estivesse – fosse no convés de um navio ou num café de Paris ou em Bangcoc – estaria na mesma redoma fria de vidro, cozinhando no meu próprio azedume."
Publicado poucas semanas antes da morte da autora, numa época em que o conflito de gerações fazia história, A redoma de vidro não poderia deixar de lado o relacionamento turbulento entre mãe e filha.
"Vamos recomeçar de onde paramos, Esther – dissera [a mãe] com seu doce sorriso de mártir. – Vamos fingir que foi tudo um sonho mau. Um sonho mau! Para quem está na redoma de vidro, vazia e imóvel como um bebê morto, o mundo é o sonho mau.
Eu me lembrava de tudo. Lembrava-me dos cadáveres, de Doreen, da história da figueira, do diamante de Marco, do marinheiro na Commonwealth, da enfermeira de olhos impenetráveis, do doutor Gordon, dos termômetros quebrados, do negro com seus dois tipos de feijão, dos dez quilos que eu ganhara com a insulina e da rocha que se erguera entre o céu e o mar como um crânio cinzento. Talvez o esquecimento, como uma camada de neve, pudesse cobrir e amortecer tudo isso. Mas fazia parte de mim. Era a minha paisagem."
Paisagem: o esquecimento amortecendo tudo para a filha. O silêncio. O silêncio. Para a mãe, o recomeço. Esse encontro entre as duas ocorre no dia em que Esther completa 20 anos. Ela está internada em uma clínica de reabilitação e ainda não tem certeza se a redoma de vidro desapareceu para sempre. “Eu não estava certa de nada”, diz. “Como poderia saber se algum dia, na faculdade, na Europa, em alguma parte, qualquer uma, a redoma de vidro com suas distorções sufocantes não desceria novamente?”
A redoma de vidro não é um mergulho sem volta à cabeça de uma mulher depressiva, pois o sol também se levanta ao redor de Esther. Não é também apenas um romance sobre a vida de uma garota desconfortável no mundo. É um romance escrito por uma poeta que, a despeito das tramoias que a vida prega em cada um, pensava que escrever, ler, escrever eram coisas mais importantes para se preocupar no dia a dia. A favor de Sylvia, é preciso perceber que o resultado paira promissor acima do horizonte; afinal, em seu primeiro e único romance, a poeta se saiu muito bem. Não fosse o ponto final que prematuramente encerrou sua vida, uma vida dilacerada na página em branco de dias sombrios, Sylvia poderia ter voado mais e mais alto, enveredando com engenho pela carreira de romancista.
Post-scriptum
Sylvia Plath morreu em 11 de fevereiro de 1963. Tinha 30 anos. O poeta Ted Hughes (1930-1998), seu ex-marido, casou-se com a amante Assia Wevill que, em 23 de março de 1969, suicidou-se da mesma forma que Sylvia, mas matando também a filha do casal. 46 anos depois da morte de Sylvia Plath, no dia 16 de março de 2009, Nicholas Hughes, seu filho, enforcou-se em casa. Não era casado e não tinha filhos. Pouco antes de morrer, recusou o cargo de professor de Ictiologia e ciências oceânicas na Universidade do Alasca-Fairbanks para instalar uma oficina de cerâmica em casa, informou a agência de notícias France-Presse (AFP) no dia 23 de março de 2009.
Nota do autor: este texto foi publicado no livro Mercado de pulgas: uma tertúlia na internet (Multifoco), publicado pelo autor em 2011.
Renato Alessandro dos Santos
Batatais,
20/10/2020
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