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COLUNAS
Quinta-feira,
12/11/2020
É breve a rosa alvorada
Elisa Andrade Buzzo
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ilustra: Renato Lima
O Tejo irradiará de uma espessura de espelho branco. Nele, tudo poderá ser projetado, e o leito do rio tudo suporta e repele, ele é o repositório das contendas não resolvidas de uma cidade, que podem resultar na tragédia de um desenlace ou na calma fatalidade do desencanto.
Na fogueira das centelhas, onde com a máscara do querer se entreolha, como é breve a rosa alvorada, sobrevoando o leito do mar de palha de ondas calmas. Como é agreste o rincão da margem norte concretada, nesta maré baixa onde submergem pneus nas praias provisórias de pedregulhos e areia árida.
Por que insistem os homens em ter o que não lhes pertence nem nunca pertencerá? Nada que seja singelo e belo se adquire, antes se aprecia, como esta natureza que não se pode pegar com ambas as mãos. As coisas pequenas e passageiras também têm uma amplidão escapável, que escorre por entre os dedos.
Que se retrocedam as paixões e as obsessões a partir de certo ponto. Que ponto é este? O ponto em que o abismo se torna um cais, o rio se torna água e uma fogueira se torna só fogo. Quando o pensamento se torna só mais um pensamento. Também tenho eu o potencial da violência? Assusto-me, pois não sou diferente dos outros, somos na essência o mesmo.
O rio vai anoitecendo como um grande olho azul royal, que agressivamente engloba o próprio globo com o seu óculo suntuoso crepitante.
Assim é uma quarentena vista a vista com um ciclope, noite e dia disparando seu olhar inquiridor, silenciosamente presenciando-me fora e dentro de minha janela. E quando não o vejo, imagino seu olhar de um só olho numa perscrutação de água que furtivamente busca outra água, pela sua própria natureza fluida.
A noite aportará com o peso de uma âncora. Água e ondas e escamas se eriçarão. Não haverá mais distinção entre terra escura e mar tenebroso no panorama dominado pelo abandono. O cais nu e descalço, se poderá por nele andar. Rondar-se-á a noite. Nas trevas das águas se esbaterá e se dissolverá qualquer coisa, qualquer gesto, qualquer pensamento.
Elisa Andrade Buzzo
Lisboa,
12/11/2020
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