COLUNAS
Terça-feira,
19/3/2002
Diário impertinente
Bruno Garschagen
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Sim, há vida além das montanhas que sufocam esta cidade (Cachoeiro de Itapemirim é cercada de morros como se houvesse sido construída num buraco. Nada mais apropriado). Mais do que aqui, aliás. Nada mais revigorante - mais até do que uma colher de biotônico Fontoura ou de Power Up - do que visitar cidades com intensa vida cultural.
Estive no Rio de Janeiro Babilônia Salve Salve resolvendo alguns assuntos (não sejam curiosos e indiscretos para querer saber do que se tratavam) e, por alguns dias, esqueci que cumpria pena em Cachoeiro de Itapemirim (uma punição divina, talvez, para quem crê nisso).
No teatro, Casa de Boneca, de Ibsen; exposições de arte gráfica russa e pintores modernistas brasileiros no Centro Cultural do Banco do Brasil; livrarias com ar condicionado simulando o clima de cidades européias e cafés; sebos grandes e com o maravilhoso cheiro de traça e papel velho (sete ótimos livros por quarenta pratas). Banho de civilidade, que seria completo se não fossem a falta de educação do carioca médio, o trânsito infernal, o preço da comida - maldições a atormentar qualquer grande cidade. Entendo agora porque Cachoeiro de Itapemirim era tão ligada culturalmente ao Rio em boa parte do século 19. E os efeitos nefastos desse afastamento nos dias de hoje.
Não pretendo fazer elegia gratuita à capital do Rio de Janeiro, que por uma dessas ironias do destino (e falta de criatividade!) também se chama Rio de Janeiro. Mas sou desses que acreditam que uma sucessão de acontecimentos é um acontecimento seguido do outro, que, no fim, dá em alguma coisa.
Tentarei ser mais didático, como um professor de grego: uma produção cultural pulsante, com todos os artistas estimulados a produzir leva inexoravelmente (e me perdoem o óbvio) à arte de boa qualidade - mesmo que seja em menor grau. Óbvio que leva a produções chinfrins, que até podem ser maioria. O que quero dizer é que um ambiente, digamos, besuntado em arte, propicia a busca de algo melhor, sem essa apatia ou a terrível escolha do menos pior porque é o que existe - Cachoeiro é pródiga nisso.
A aceitação do sórdido leva (é incrível essa incrível capacidade de influência do gosto questionável), pasmém, à produção em escala do sórdido. E se o sórdido é o que existe, e se sórdido é considerado bom, logo, o bom é sórdido. Sacaram?
Percorrendo algumas ruas do Rio me senti como numa outra dimensão, acostumado que já estava (afinal fazem cinco longos anos) com o ar insuportável desta waste land capixaba. Tive vontade de parar em vários lugares, sentar no chão e me por a escrever. O ar poluído e quente do centro da cidade parecia até colaborar; a correria nas calçadas me lembrava a todo o instante de que é preciso fazer algo, logo, mesmo que de forma mais lenta para atingir um grau razoável de satisfação com o resultado. Numa cidade do interior quem trilha os caminhos da arte segue sem ceder à tentação da ação - como na frase de Jorge Luis Borges referindo-se a Macedônio Fernandes (quem não conhece, corra para ler). E quando cede, não raro consuma um desastre.
Difícil saber o que seria morar numa cidade como o Rio, com todos os defeitos que carrega. Ouço que o estresse não compensa e o que se ganha se gasta na sobrevivência, o que não inclui custos para mim vitais como livros, teatro, cinema, exposições, restaurantes e bares. Como o sujeito pode viver sem essas garantias básicas a uma sobrevivência digna?
Desconheço até que ponto a cantada em prosa e verso violência carioca perturba a vida de quem lá mora. Quem está fora e acompanha tudo pela imprensa, tem a impressão de que o faroeste foi institucionalizado, a exemplos de outras coisas perigosas à saúde, como o piscinão de Ramos, César Maia e Garotinho, o Anthony.
Não vi nada, acho que por sorte. Mas quase roubaram o carro do meu tio quando saía da faculdade. Nada é perfeito, dizem por aí, e eu nunca entendi muito bem o real significado da frase. Tenho um sério problema com ditos populares. Para ser mais preciso, tenho sérias divergências com o popular.
Acreditem, passar uma semana no Rio foi o maior legal (e me perdoem por uma expressão tão juvenil e antiga). Terrível foi desembarcar em Cachoeiro; ver que a cidade continua com aquela clássica arquitetura de reboco exposto; que nenhum motorista utiliza a seta; que o cinema só passa blockbuster; que no teatro só haja peça infantil de gosto questionável; que a única livraria é indecente (de ruim!); que os escritores tenham mais pompa do que circunstância (se é que vocês me entendem); que o modernismo tenha passado por cima da cidade, como os ventos; que o absurdo tenha se tornado moeda comum nas relações profissionais, econômicas, políticas e culturais.
Ainda bem, restam alguns poucos amigos com quem é possível conversar, rir e beber. São pessoas de gerações anteriores a minha, e talvez isso faça a grande diferença entre eu aderir à mediocridade instituída ou buscar olhar sobre os morros ocupados ilegalmente (bom, nunca vi o contrário); são como guias a orientar-me pela estrada sem fronteiras dos que resolvem buscar a graça da vida numa ironia ao riso fácil de uma piada de português.
Bruno Garschagen
Cachoeiro de Itapemirim,
19/3/2002
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