COLUNAS
Sexta-feira,
1/1/2021
O que fazer com este corpo?
Ana Elisa Ribeiro
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"Como morrer" é um negócio que a gente faz questão de pensar pouco, mas incomoda bastante. Às vezes fico pensando por dias sobre gente que considero que teve certa sorte ao morrer, gente que morreu terrivelmente, mortes lentas, mortes rápidas, mortes provocadas, premeditadas, muito imprevisíveis, etc. Penso como o Estado lida com a morte, como a gente lida com ela.
Temos falado tanto em morte neste último ano e já ouvi, mais de uma vez, alguém dizer que tem medo de morrer sem ar, justamente uma das possibilidades assustadoras da covid-19. Quando me lembro dos meus avós, me vem a ideia de que uns morreram "bem", outros, nem tanto. Uns ficaram morrendo por anos e anos... outros levaram horas, minutos e nem souberam a causa. Que felicidade, penso.
Outro dia, soube de alguém que morreu subitamente... e só deram falta dias depois. Nosso confinamento em solidão deve ter ensejado várias mortes assim. Também soube de gente que morreu arrastadamente, matando um pouco todos e todas que estavam em volta. Minha mãe tem falado muito em morte, mas por conta de um problema cardíaco. Já até escrevi aqui sobre a vontade dela de ser enterrada num determinado cemitério, no plano funerário que ela quer adquirir, etc. Eu não quero. Outro dia, recebi um telefonema de telemarketing de um plano desses. Desliguei antes de terminarem de falar. Não sei o que me deu. Depois tive medo de rogarem uma praga mortal. Será que esse pessoal tem mais poder nessas coisas?
Chegou por WhatsApp, num dos poucos grupos que aguento ter, um link para uma revista acadêmica de estudos sobre a morte. Fiquei impressionada, positivamente. Deu vontade de ler tudo, todos os artigos, em sua cientificidade, falando em mortes invisíveis, mortes violentas, adolescentes que morrem e "somem" ou "são sumidos", gente que desaparece na burocracia do Estado.
Morrer é um grande incômodo; o que fazer com o corpo é ainda mais. Como dar cabo de uma carcaça que nos entristece, pela qual ainda temos respeito? Ou, ao contrário, dar fim a um corpo indesejado? Isso é problema de assassino, e tal não é o meu caso. Mas aquele momento esquisito de tomar decisões sobre o morto ou a morta queridos é bem incômodo.
Tem sempre alguém mais diligente na família, que bom. Tem sempre quem consiga telefonar, pedir a coroa de flores (escolher, fazer uma encomenda, curadoria floral, etc.). Alguém tem de decidir o modelo do caixão, se a família tiver condições. Mapear um cemitério, ver a posição da cova, plaquinha e tal e coisa. Terrível. Eu acho que não serei essa pessoa. Eu me desmonto demais por muito menos.
Essa tal revista científica me deu um choque de realidade, tratou de coisas que geralmente são tabus. A gente evita falar do que não quer, evita aproximações. Não é assim? E a morte é, em nossa cultura, algo de ruim, de indesejado. Não a queremos rondando, exceto quando temos uma necropolítica no poder. Aí são outros quinhentos.
Perdi relativamente poucas pessoas na família. Do núcleo próximo, ninguém, ainda bem. Um susto aqui e outro ali, mas nada irreversível. Aí vamos nos distanciando e vão aparecendo casos: tias, avós. Quando as pessoas morrem velhas, têm nossa compreensão. É triste, claro, mas a despedida é serena, embora essas mortes possam ter gerado outros sofrimentos. Cada pessoa tem sua história de vida e sua história de morte. Cada um dos meus quatro avós morreu de um modo completamente diferente do outro. Uns sofreram mais, durante anos e anos, tornando a convivência sempre envolta num clima de tristeza. Sempre me abalei muito. Outros se foram "como passarinhos", como dizemos aqui, o que causava dor, mas trazia um alívio que era sentido pelas pessoas ao redor quanto ao próprio morto: não sofreu.
As primeiras mortes com que tive contato foram de pessoas conhecidas, mas não muito próximas. Isso me chocava, me deixava meio sem sono. Morreu primeiro um ex-paciente do meu pai, um senhor que havia me apadrinhado quando nasci. Tive ataques agudos de tristeza na morte dele, e ele só me via uma vez por ano. Depois a mãe de uns amigos, o pai de uma amiga. E sempre evitei velórios, como evito casamentos. A morte nunca desceu bem e ainda não desce; pior ainda quando é de alguém mais querido, mais próximo, caso de uma tia jovem que se foi num acidente de carro. Essa me deixou trêmula por horas a fio. E vê-la no caixão foi algo que ainda me devolve a uma das cenas mais tristes da minha vida, a um dos abraços mais sentidos que já dei: aquele na minha avó, mãe dela.
Assisti meio recentemente à primeira cremação da minha vida e achei digno. Bem mais digno do que aquele caixão baixando e uma terra ávida o soterrando. O fogo me parece inclusive mais purificador. O problema é o que fazer depois... como sabemos. Um parente guarda a urna da esposa na mesa de cabeceira. Não, eu nem dormiria direito desse jeito. E deve ser um incômodo para o morto, em alguma dimensão, sei lá. Só sei que esta carcaça que usamos e gastamos ao longo da vida, curta vida, dá um trabalho danado depois que se torna um amontoado de ossos e carnes em decomposição. Ver um rosto sem a alma no olho é uma cena impressionante. E não somos educados para isso, para esse dia que sempre chegará. Imagina! Se não somos educados para envelhecer, se nos fazemos tão mal não aceitando a velhice e a doença, o que esperar de nossas disposições para a morte, não é mesmo? Às vezes é só o que desejo: uma vida bacana, apesar de tudo o que há contra, e uma morte serena.
Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte,
1/1/2021
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