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Sexta-feira,
11/11/2022
Gal Costa (1945-2022)
Julio Daio Borges
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“Gal”, a palavra, para quem não sabe, é um equivalente sonoro de “girl”, em inglês. “Gal” Costa, a garota Costa - ainda que seu nome fosse Maria das Graças e o “Gal”, como apelido, viesse a calhar.
Mesmo associada ao Tropicalismo, Gal Costa, quando apareceu, era chamada de “João Gilberto de Saias” - pelo modo de cantar, “para dentro”, supostamente inventado pelo pai da bossa-nova.
Reza a lenda que, quando a conheceu, João Gilberto pediu que Gal o acompanhasse em um série de canções, que entoava com seu violão. Sem falar nada, emendava uma canção na outra, e apenas observava a novata. Depois de um tempo, deu o veredito: “Você é a maior cantora do Brasil”.
A maior cantora brasileira de todos tempos? Teríamos de passar por cima, no mínimo, de Carmen Miranda, que Caetano Veloso considerava tão famosa quanto... Mickey Mouse (sim, numa de suas comparações esdrúxulas).
A maior cantora brasileira de seu tempo? Nesse caso, teríamos de passar por cima de Elis Regina, que, com certeza, disputava o trono - e, antes de morrer, assumira uma espécie de “inveja branca” por Gal ter gravado “Meu bem, meu mal”, do mesmo Caetano, antes dela (Elis).
E Maria Bethânia? Eram duas grandes cantoras baianas praticamente na mesma turma - é difícil escolher uma. Mais engajada, digamos assim, Bethânia resolveu se lançar substituindo Nara Leão no histórico show “Opinião” (1965). Gal era menos politizada, desde o princípio.
Mas não ficou atrás. Sua estreia - com o onipresente irmão de Bethânia - no álbum “Domingo” (1967) é um dos grandes momentos dos dois. Quando Caetano, pré-tropicalista, soava bossa-novista - e Gal, portanto, estava em seu elemento.
“Coração vagabundo”, inclusive, foi gravada pelo próprio João Gilberto, nos anos 90. “Avarandado”, também. “Candeias” é um dos grandes momentos do compositor Edu Lobo, na voz de Gal. Para meu gosto, “Domingo” disputa, cabeça a cabeça, com o “Caetano Veloso” (1967), a estreia solo do baiano.
Assim como Milton Nascimento, Maria Bethânia é acusada de fazer só o que quer - e tem de ser do seu jeito. Quem acusa não sou eu - é o irmã dela... Logo, Gal Costa, apesar da forte personalidade, deve ter parecido menos indócil e mais receptiva a seus apelos do que a própria irmã.
Este texto é mais uma prova de que é muito difícil separar Gal Costa de Caetano Veloso. Praticamente impossível. Talvez ela seja a maior intérprete dele - e “Minha d’água do meu canto” (1995), virtualmente um songbook de Caetano, quase trinta anos depois, é mais uma constatação.
É verdade que o disco alterna canções de Chico Buarque, o grande rival de Caetano, em matéria de composição. De quem, aliás, Bethânia acabou se aproximando - mais notoriamente em álbuns como o “Chico & Bethânia” (1975).
Em meio a tudo isso, a meu ver, os “Doces Bárbaros” (1976). Incluindo uma peça que faltava nesse quebra-cabeça: Gilberto Gil. Como disse Jorge Drexler, um uruguaio falando com propriedade, eram muitos talentos, ao mesmo tempo - e no mesmo país.
Para quem duvida, basta ler “A era dos festivais” (2003), de Zuza Homem de Mello - e constatar que os compositores e intérpretes surgidos nos festivais da canção dos anos 60 e 70 eram páreo para a época de ouro do samba, os anos 30 e 40, para a própria bossa-nova e o samba-canção, nos anos 40 e 50, respectivamente.
Em meados dos anos 80, Gal Costa foi acusada de soar excessivamente pop, como quando, por exemplo, gravou “Um dia de Domingo”, com Tim Maia, sucesso de Sullivan & Massadas. Considero, porém, que voltou à boa forma, nos anos 90 - apesar de ter se perdido ao flertar com a música eletrônica, nos últimos anos.
O grande desafio, para cantoras depois dela, foi, além do desafio vocal, conseguir soar tão pertinentes quanto Gal Costa, que nasceu filha dileta da bossa-nova, e de João Gilberto, participou do Tropicalismo, ainda que fosse uma diluição de Oswald de Andrade, se associando com um dos maiores compositores de sua geração, o inescapável Caetano, conquistando igualmente o respeito de mestres como Tom Jobim e Dorival Caymmi, sem ficar atrás de grandes intérpretes como as mencionadas Bethânia e Elis.
Marisa Monte, para ficar no maior exemplo da geração seguinte, não teve a mesma sorte. Ainda que premiada com a voz, não estava entre movimentos com o Tropicalismo e a bossa-nova (os Tribalistas não são um movimento, são?). E, sem contar com um Caetano para chamar de seu, nem com um Chico para flertar de vez em quando (Arnaldo Antunes e Carlinhos Brown nem se comparam), Marisa Monte já estava muito distante, cronologicamente, para conquistar o respeito de Caymmi e Jobim (no máximo, de um Nelson Motta e/ou de um Paulinho da Portela).
Enfim, tive a sorte de viver no tempo de Gal Costa e tive o privilégio de assiti-la, no auge, na turnê de “O sorriso do Gato de Alice” (1994). No palco, ainda com afinação perfeita, ela se revelou graciosa e, ao mesmo tempo, deslumbrante. “Brazilian flower from Bahia”, na definição de Tom Jobim.
Dez anos mais tarde, pude assistir ao filme dos “Doces Bárbaros”, um registro imperdível de 1976 - e Gal estava lá, conosco, ao final da projeção, para nos saudar.
Para completar, estive na pousada que foi sua casa, na Bahia, e comprovei seu bom gosto - para além das canções...
Até vi Bethânia, que merece todo o nosso respeito e toda a nossa consideração, mas ouvi muito mais Gal Costa, que me cansava menos, porque fazia menor uso da dramaticidade (o que não deve ser tomado como um juízo estético - apenas pessoal mesmo...).
Infelizmente, não vi Elis Regina ao vivo, que, em disco, considero a maior de todas.
Sendo assim - pelo que vi e ouvi -, João tinha razão: pelo conjunto da obra, Gal Costa foi a nossa maior cantora.
Para ir além
Eclipse oculto e Alto astral, altas transas, lindas canções
Julio Daio Borges
São Paulo,
11/11/2022
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