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Terça-feira,
9/2/2021
O acerto de contas de Karl Ove Knausgård
Cassionei Niches Petry
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O fim inicia pelo começo, ou seja, o lançamento do primeiro volume de Minha luta, um romance dividido em seis longas partes, que Karl Ove Knausgård lançou entre os anos de 2009 e 2011 em seu país, a Noruega, e somente agora tem concluída sua publicação no Brasil, pela Companhia das Letras. São milhares de páginas que têm como protagonista e narrador o próprio Karl Ove. Os demais personagens são seus familiares, amigos, alunos, escritores, editores, todos (com algumas exceções devido a ameaças de processo) com seus nomes reais e retratados de forma fiel (ou assim nos quer fazer crer o autor) à realidade, sem nada de ficção, mas com a roupagem de um romance, um longo romance, um enorme romance, um pesado romance.
Temos aqui um Karl Ove Knausgård preocupado com a reação das pessoas mencionadas, pois antes da publicação envia por e-mail os originais para saber a opinião delas, o que me lembrou de um autor brasileiro, Jacques Fux, que usa, de forma irônica e ficcional, esse recurso no romance “Brochadas: confissões sexuais de um jovem escritor”, cujo protagonista, que tem o mesmo nome do autor, conta suas falhas na cama e pede autorização das “vítimas” de seus fracassos para utilizar seus nomes nas narrativas.
Karl Ove provoca a irritação de seu tio, irmão de seu pai, que percebe erros factuais e afirma que a história irá manchar a memória da família. Ameaça processá-lo e, por isso, é quem acaba sendo o responsável pelo sucesso da obra, uma vez que deixa vazar tudo aos jornalistas, despertando interesse pelo romance antes mesmo de seu lançamento. É o que afirma o amigo de Karl: “vai ser uma publicidade incrível para o livro”.
Os detalhes da rotina familiar do escritor mais uma vez marcam o tom dessa última parte de Minha luta. O dia a dia com sua mulher, Linda, também escritora, e os três filhos pequenos é descrito de forma minuciosa: pôr as crianças para dormir, preparar as refeições, levá-las à escola infantil comunitária, ir às compras, lavar roupa. Nada disso, porém, se torna monótono, pois a escrita de Karl Ove é envolvente, tanto que consegue dar saltos no tempo sem que percebamos, além de inserir trechos ensaísticos que dão um intervalo na longa narrativa.
Em O fim, Knausgård extrapola nesse quesito ao escrever um capítulo de 400 páginas totalmente teórico, um livro dentro do livro, em que discute a questão dos nomes de personagens, do título de obras e por que ter denominado sua série romanesca com o nome do livro maldito de Hitler. Para tanto, destrincha os trechos da obra do ditador, citando inclusive enormes trechos, lembrando como as memórias de Hitler acabam sendo distorcidas, comparando-as com trechos de escritos de, entre outros, Kubizek, amigo do então jovem genocida, o que de certa forma explica o porquê das discrepâncias entre o que Karl Ove lembra e o que o seu tio disse que realmente aconteceu.
“Claro que não podemos chegar à verdade sobre as coisas realmente se passaram, porque essa verdade pertence ao instante e não pode existir fora do instante, mas é possível olhar ao redor, iluminar o que aconteceu a partir de vários ângulos, pesar a probabilidade de uma coisa e a probabilidade da outra, e nessa tentativa de esforçar-se de maneira consciente para desviar os olhos daquilo que mais tarde aconteceu, ou seja, esforçar-se para não ver determinado traço de caráter ou determinado acontecimento como um sinal de outra coisa que não aquilo de fato é em si mesmo.”
O narrador ainda lembra as crises de depressão de Linda Boström Knausgård, que acaba sendo internada em um hospital psiquiátrico. Anos depois, separada de Karl Ove, ela iria ser internada outras vezes e sofreria terapias dolorosas, contadas em A pequena outubrista, publicado por aqui no final de 2020 pela Editora Rua do Sabão. É através da literatura, portanto, que ambos acertam contas com a vida e refletem sobre tudo a seu redor: “A beleza, ou seja, a linguagem literária, o filtro através do qual o mundo é visto”.
Cassionei Niches Petry
Santa Cruz do Sul,
9/2/2021
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