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Terça-feira,
20/4/2021
Cem encontros ilustrados de Dirce Waltrick
Jardel Dias Cavalcanti
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Quando Dirce se encontrou com Donaldo Schüler numa pastelaria famosa de São Paulo, durante o Bloomsday, entre tantos assuntos que surgiram na mesa ele sugeriu que ela escrevesse um livro de ficção. Peremptório, disse para ela: "Estou cansado de ler seus artigos acadêmicos, escreva ficção! Você é artista, tem que ficcionalizar!". Dirce prometeu que faria o livro. E fez. Convenhamos... não é bem essa a história.
O que ninguém sabia, muito menos Schüler, é que Dirce estava há anos pagando sua empregada para usar metade de seu tempo de trabalho limpando a casa e a outra metade lendo os livros da sua biblioteca, principalmente as biografias dos artistas que ela admirava e que ela julgava livros mais fáceis de serem absorvidos. Dirce sabia que a sua empregada adorava falar como o diabo e que contava e recontava para ela as histórias engraçadas da vida dos escritores aos quais acabara de ler nas biografias.
Aproveitando aquelas tardes entediantes de vida de professora universitária, decidiu ouvir os relatos da empregada e digitá-los para ver se dariam um bom livro. E deu. Que imaginação a dela! O que a doida da empregada fazia era fantasiar encontros com os escritores e/ou situações em que, de alguma, forma eles participavam, nem que fosse em cenário de cemitério.
Sem condições de dizer um não a Schüler, o homem que considerava o seu mestre, mas também indisposta a gastar seu tempo, sua beleza e sua libido com a carga pesada da literatura, Dirce obrigou a sua empregada a escrever, ou melhor dizendo, ditar o livro, sem perceber que ela o estava fazendo. O que a “autora” faria, depois de digitar aquelas invencionices, seria apenas refinar as histórias corrigindo aquele palavreado incorreto de sua empregada.
Depois de tudo corrigido, Dirce já de cara decidiu que um livro de mentira deveria ter uma orelha de mentira, escrita por uma de suas escritoras prediletas, Mary Shelley.
Como o editor caiu nessa de acreditar que Mary estava viva, eu não sei. Tem editor que é tão maluco como todos os escritores.
Além dessa mentira, também um título de mentira: Cem encontros ilustrados. Primeiro que, de “ilustrados”, o livro não tem nada - a não ser o retrato de uma casa perdida frente a uma praia, uma foto de uma obra de Edward Hopper e na capa um desenho de seu ex-marido, desaparecido (que nada, ele fugiu com uma gostosa argentina que conheceu na praia); depois, no livro não havia coisíssima nenhuma de “cem encontros”, mas apenas uns vinte e tantos mentirosos encontros.
Na foto acima, Retrato de Lucia Joyce com Dirce Waltrick
Eis, então, o conteúdo do livro de Dirce, digo, de sua empregada escritora.
Desde uma carta que lhe escreveu o famoso escritor austríaco Robert Musil (ver foto da carta na abertura dessa resenha), até o encontro com a filha de Joyce (foto acima) e a aparição de escritores e escritoras como Kafka, Sylvia Plath, a cozinheira Alice Toklas (antigo caso de Gertrude Stein), Virginia Woolf, Beckett, Poe até cenas de obras literárias repisadas na mais pura fantasia, o livro é uma espécie de alucinógena e falcatrueira invenção da “autora”.
Desses encontros e fatos, todos falsos, até os verdadeiros, um dos mais interessantes é o encontro no hospício com a escritora suicida Sylvia Plath que, sem mais nem menos, se apropriou de algumas frases de Dirce num momento de delírio para transformá-las num conhecido poema da escritora americana: “Cut”.
Quem narrou isso foi a empregada, que acreditava piamente na história e sugeriu a Dirce que encontrasse um advogado (um de verdade, bonitão, igual ao de filmecos americanóides) e que entrasse com um processo por danos autorais por apropriação indevida de obra de criação artística - contra aquela suicida safada.
O livro Cem encontros ilustrados relata, de verdade, o amontoado das mentiras que Dirce contava para sua empregada, dizendo que havia conhecido todas aquelas personalidades que a empregada passava a conhecer naquele momento através de suas leituras desgovernadas.
Imagina se Dirce conheceu Lovecraft num hospício e ficou batendo papo com ele como se fossem amigos de escola? E como ela gosta de encontrar escritores em hospícios! Também, quem pode permanecer normal habitando o tempo todo o mundo da imaginação?
A própria autora de tanto ler sobre esses tresloucados escritores acabou ficando doidinha inserindo mentiras na cabeça da empregada que as relatava como se fossem verdades sendo tudo mentira, na qual a própria Dirce passou a acreditar.
E vendendo seu livro de mentira para um editor - como se fosse tudo verdade - buscava a fama literária desses mesmos escritores que ela supunha ter encontrado. Enfim, achou um editor que acreditou em tudo (porque é fácil vender um livro onde nomes da nata da literatura comparecem) até ele descobrir que era tudo mentira: não só o que estava no livro como o fato da autora não ser Dirce mas, sim, a empregada...
Que inventava mentira sobre a mentira, querendo se passar por verdadeira, neste mundo de mentiras, contadas pela imaginação, de gente que parecia estar louca, mas não estava, apenas queria nos convencer de que a literatura é uma terra de ninguém, onde a mentira e a verdade se confundem...
E pode tudo ser tanto mentira como verdade - e verdade tudo mentira. Pois tanto faz para a arte se algo é mentira ou verdade, o que importa é que está aí e que a maioria dos fabricadores de verdade-mentira acabam se matando ou no hospício ou abandonando a literatura como aquele poeta de Charleville, que virou traficante de escravas brancas...
Só faltou Dirce dizer para a empregada que ela era mulher de Verlaine e que Rimbaud era o cafajeste que destruiu seu casamento, mas isso não está nesse livro - sairá no próximo, que a empregada vai ditar nas férias da “autora”.
Não sabendo mais o que dizer dessa loucura, escrevi a resenha do livro. Resenha esta que, antes de publicar, enviei para alguns amigos, que a passaram por e-mail, sem meu consentimento, para o editor do livro...
O editor, descobrindo que Dirce, além de explorar a empregada, vendera gato por lebre – afinal, não era a autora do livro –, decidiu processá-la. Ela, boba que não é, fugiu da polícia indo para Dublin, pois sabia que estava chegando o dia da comemoração do Bloomsday. E que lugar melhor do que esse para se esconder? Um lugar onde se reúne todos os anos um grupo de malucos que falam feito histéricos de um livro que ninguém entende o que quer dizer. Dirce, assim, safou-se e jamais foi reencontrada.
Também entrei nessa, pois o jornal que me pagou para escrever a resenha descobriu que na verdade quem a tinha escrito foi o poeta Mário Alex, que nem havia recebido o livro. Mas resenha é assim, para que ler o livro se podemos imaginar como ele é? Eu apenas surrupiei o texto dele quando me enviou para apreciar. Meu nome agora está na lama do jornal e para desanuviar acho que vou para Dublin me encontrar com a Dirce, essa fantasiosa criatura que sabe nos devolver para o mundo encantado das Reinações de Narizinho.
Após lançado o livro, agora com grande fama graças ao escândalo que disparou sua venda, ele foi motivo de leitura semanal no Clube das Mulheres Finas, de Alamerda do Sul. Depois de retirado de suas bolsas Gucci, Prada e Chanel (que competição!), junto aos novos revólveres com estampa de oncinha ou cravejados de pedras preciosas "Made in China" - revólveres estes comprados com a permissão do troglodita que governa o Brasil -, o desentendimento numa discussão sobre a verdade e a mentira no livro fez com que as intrépidas damas de Alamerda do Sul se estressassem, a ponto de provocarem entre si um tiroteio sem fim onde não se salvou nenhuma mentira viva.
Desde o acontecido, o único fato novo é que a empregada nunca existiu e que Dirce estava era tendo um surto esquizóide (na verdade, Dirce já era famosa por ter dito a clássica frase: "Não tenho empregados, não levo a luta de classes para dentro de casa"). Mas o livro de fato existe. E é divertidíssimo em seu surto imaginativo.
Jardel Dias Cavalcanti
Londrina,
20/4/2021
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