COLUNAS
Sexta-feira,
23/4/2021
Silêncio e grito
Ana Elisa Ribeiro
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Santiago H. Amigorena é roteirista e diretor de cinema em Paris e tem toda a sua obra escrita em língua francesa. É, no entanto, argentino, elemento de sua biografia integrado à história que conta, e bem, em O gueto interior, lançado pela editora Todavia em 2020, com tradução elegantíssima de Rosa Freire d’Aguiar. Trata-se de um exemplo de livro cuja pequena extensão pouco diz sobre o impacto que pode causar.
O gueto interior é narrado e protagonizado por Vicente, um imigrante polonês judeu que chega a Buenos Aires antes da Segunda Guerra Mundial e ali se estabelece, casando-se com uma mulher também de família imigrante. Levando uma vida comum na capital argentina, Vicente recebe cartas da mãe judia, que continuou na Polônia. Além dela, os irmãos e sobrinhos mantinham-se lá, por razões diversas, e recusavam os convites para se estabelecerem na América do Sul.
A um só tempo, Amigorena nos conta uma história íntima e externa de um imigrante judeu antes e durante a Segunda Guerra Mundial; uma história de fuga e culpa; uma história de memória e esquecimento, narrativa e silêncio; história de pertencimento e desapego; além de contar os horrores do nazismo durante sua escalada, o que pode produzir um efeito mais aterrador do que contá-lo a posteriori. A quantidade de perguntas sem resposta que o protagonista se faz, inclusive sobre a humanidade, em qualquer lugar do planeta, é um dos elementos que despertam angústia nesta narrativa.
Mesclando as questões íntimas e psicológicas de Vicente a uma pesquisa real sobre a guerra que ocorria na Europa a partir de 1939, Amigorena nos transporta para aquele momento histórico, no entanto do ponto de vista de um judeu polonês-argentino assolado pela culpa de ter notícias imprecisas, mas terríveis, sobre o que acontecia em seu país de origem, onde deixara vivos seus familiares. As cartas da mãe, cada vez mais esparsas, chegavam com notícias atrasadas, enquanto os jornais estrangeiros da época, raros em Buenos Aires, mal noticiavam o que de fato ocorria, sem dar qualquer destaque à construção de guetos ou campos de extermínio, por exemplo. Era difícil sequer acreditar que algo assim fosse possível entre humanos.
Vicente decide-se pelo silêncio quando se sente traidor, impotente e covarde diante do que pensa que poderia ter feito para salvar irmãos e mãe. No entanto, tem esperanças de que nada do que sabe, ou quase sabe, seja real. Num entrelugar, nem Buenos Aires, nem Varsóvia, é um ser completamente abatido pelos sentimentos ambíguos de quem não sabe ao certo o que sente: quer fugir mas quer ficar, é traidor e é herói, quer distância da mãe judia mas se sente responsável por ela, é menos judeu do que os nazistas o consideram, pertence e não pertence, pratica e não pratica. Torna-se um pai ausente e um filho distante.
O gueto interior impressiona por tocar novamente nas questões da Shoah (como prefere chamar o narrador), mas de dentro, de uma perspectiva presente, discutindo questões de imprensa, discurso e uma impressionante apatia humana diante dos fatos, enquanto eles se desenrolavam. A angústia de Vicente silencia nossos corações, em especial porque compartilhamos com ele o indizível das barbaridades de que somos capazes - como seres (des)humanos, corram os anos 1940 ou agora, 2020. No epílogo, Amigorena menciona os deslocamentos de sua família ao longo do século XX, fugindo de guerras ou de ditaduras latino-americanas, caso dele mesmo e de seu núcleo familiar.
O volume de pouco mais de cem páginas pode causar forte impressão, além de propor questões que infelizmente não ficaram no século passado. Fascismo, nazismo, radicalismos, desumanidade, necropolíticas e perseguição não estão extintos, e é preciso estar atento e forte.
Para ir além
O gueto interior
Santiago H. Amigorena
Todavia
Tradução de Rosa Freire d’Aguiar
Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte,
23/4/2021
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