COLUNAS
Quinta-feira,
22/4/2021
Lisboa obscura
Elisa Andrade Buzzo
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Dessa escuridão, não nos demos conta de sua chegada. E, por isso, duvidamos de sua natureza – sutil ou traiçoeira? discreta ou meticulosa? A escuridão observa-nos em um canto seu, que contempla tudo, à distância, aguardando o momento da aproximação. Ou, simplesmente, está em tudo, envolve-nos, engolfa-nos, por completo, podendo um corpo aceso dela não se aperceber, ignorando lustres e abajures.
Fomos apanhados à rua pelo pôr-do-sol e gostamos de começarmos a sermos gatos pardos. Já houve e continuam havendo vozes estridentes, e banais, querendo fazer dormir, todos, novamente. Particularmente, eu gosto acordada da natureza da noite, e a imensidão de que falo não tem a ver com esses sons humanos descompassados, pedintes de validação de seu poder frouxo, autoritários, nem com a sonolência de um recolhimento tradicional austero.
E ainda que as noites compridas tenham sido de estrelas sempre poucas, o que aprendi a gostar nessas é de sua tranquilidade inabalável, sua extensão longa que, ao fechar os olhos, sonho desconexões de outros tempos, com auroras boreais. Tão pacata é ela que dentro cabem muitas outras coisas, nessa noite de tela branca. Ainda que em cores desbotadas, ela é uma televisão muito mais ampla e menos plana do que aquelas que vislumbro pelas grandes janelas acesas.
No entanto, na amplidão das noites de inverno, que assim longas foram se tornando (primeiro, de um dia para outro e, depois, a cada dia mais), em um momento determinado em que me apercebi de sua calma e tenaz voracidade, perguntei-me se é a obscuridade que se revolve a nos encontrar ou se somos nós que vamos em direção a ela. Ou então, por exemplo, falta-nos clareza ou de luz sofremos privação?
Da noite não pretendíamos muito, mas a ela nos agarramos como se fosse claridade de luz. A obscuridade começa cedo e termina tarde. E toma conta de tudo de tal forma gradativa que nos esquecemos do que se tinha como de costume. A noite nos envolveu com a aderência da eternidade. Mas nos últimos dias do inverno ela vai minguando até ficar pequena, quase domesticável. A claridade súbita sobe diante de nós como um fantasma de olhos arregalados. O sol de Lisboa, como o de Teixeira de Pascoaes, é uma chaga aberta. E ela ressurge, como uma cicatriz que reabre inadvertidamente.
Na praça do Areeiro espouca a resiliência silenciosa de uma arquitetônica forma de opressão. Os bairros a cada dia despertam mais cedo e, brilhosas, as suas paredes claras aceitam que o sol sobre elas reflita, e nasça. Mais uma vez, noite e dia, o Tejo cintila, veleiros estufam as velas, pescadores alçam o arpão e estendem as redes, caranguejos retorcem as garras. O mundo é dolorido porque é vivo. E, dentro em pouco, a obscuridade de Lisboa se irá embora, sem nos darmos conta de que um dia ela tenha se aproximado, e de que de tal maneira tenham sido as suas noites longas.
Elisa Andrade Buzzo
Lisboa,
22/4/2021
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