COLUNAS
Quinta-feira,
7/4/2022
Efeitos periféricos da tempestade de areia do Sara
Elisa Andrade Buzzo
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Primeiro, li uma notícia no jornal sobre Madri, e a nova chuva de lama, o céu laranja, a poeira que vem do Saara. Depois, fui para a janela, e lembrei que ano passado queria ter escrito sobre a chuva de lama, as tempestades nas areias da África, o aspecto da atmosfera luminosa e o sol opaco. No exterior, vi tudo isso, menos a água e a formação das tormentas. As histórias meteorológicas não paravam de aparecer nos sites, “Imagine stepping outside to a world where the sky was rusty orange and, although it was daytime, the sun could not be seen” (AccuWeather.com), como enredos de histórias de imaginação. E então resolvi que a janela não bastava, tinha de sair e descobrir por mim mesma a grande nuvem de poeira de ar seco.
A areia soprada da África, estacionada como uma nuvem do tamanho do mundo a inundar os céus de uma porção da Europa. E agora me dou conta de que a Europa é algo azulado, estrelado, estratificado. Mas há uma bruma magnífica que se instala nessa ideia de serenidade unitária. Uma grande nuvem de poeira acima daquelas divisões sem importância. Ouço alguém dizer com desdém, “pó do Marrocos...”. Há quem noticie males, aconselhe fechar as janelas, usar máscara. Mentalmente vejo a tempestade no deserto do Saara que gera rajadas de vento na superfície do solo, as quais levantam partículas de pó e poeira.
É algo magnífico; e quanto mais a imaginamos, mais perto da realidade impossível de se ter acesso. Como não vejo a tempestade, e não a verei, ela é sempre bela e nunca decepciona. Limpo a poeira preta acumulada nesta mesa. As noites, são paradas; os dias, têm um aspecto de véu denso, e o sol é uma placa de ouro escondida: a atmosfera conformou provisoriamente uma nova Terra. Na periferia do continente, um quê luminoso de Blade Runner, uns distintos satélites que vemos nos fantasiosos planetas coloridos e arenosos e nos grandes edifícios envidraçados, voltados ao universo, de Star Wars. Não, o perímetro de circunvolução do sol continua o mesmo, a lua mantém-se estática e gelada e continuamos vivendo em guerra como nos filmes do Japão medieval de Kurosawa.
Saí, enfim; vi o horizonte diverso de todas as outras coisas que já tinha avistado da Terra - um véu que não se toca, um dossel invisível. Mas visível embora à imaginação tenha dado continuidade, formando enredos fictícios, próximos ao plausível. Melhor: melhor do que os verossimilhantes, aquilo que poderia ser, ainda que não seja, nem será. Tudo isso porque eu queria estar na base da tempestade de areia no deserto, sentir se é úmido o seco, ali onde o vento revolve a areia e os grãos, e geraciona o revolver primeiro que espanta e traz as partículas em dispersão continental. As noites tornaram-se cinzas; o dia tornou-se castanho.
Elisa Andrade Buzzo
Lisboa,
7/4/2022
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