Raro leitor, rara leitora. Serei breve, antes que o medicamento para pressão me dê a sonolência de um urso pardo no inverno. Só quero compartilhar com vocês o fato de eu ter visto o abismo e ele, como de praxe, ter me encarado de volta. A experiência não me deixou mais sábio, mas posso redigir algumas obviedades.
A primeira delas: descobrir-se portador de uma cardiopatia grave não têm muitas vantagens. Não mesmo. Eu me julgaria mais sortudo se tivesse acertado as dezenas da Mega Sena, tomado um sorvete de pistache ou, simplesmente, se tivesse tropeçado na calçada.
Todavia, o que fevereiro reservava para mim eram novidades no consultório de cardiologia. Descobrir que a válvula defeituosa do meu ventrículo esquerdo, aquela sapequinha, havia aprontado um aneurisma na minha aorta. Que, por sua vez, poderia se romper sem maiores cerimônias. Pluft, plaft – quem sabe qual seria o som de artéria rompendo? Em seguida, calculo, uma morte rápida.
Não é o tipo de notícia que você recebe e, coçando o queixo, segue com a leitura de um livro. Em um dia você está preocupado com seus abundantes cabelos brancos e, no outro, descobre que “empacotar” não é só a única certeza da vida. No meu caso, podia ser um compromisso para amanhã, depois do lanche da tarde.
Era um problema solucionável com uma cirurgia de grande porte. Dessas que fazem um belo corte no seu peito, retiram o seu coração para reparo e o devolvem com novos “acessórios” – uma válvula mecânica e uma substituição para o trecho inchado da sua aorta. O que não é pouco assustador, convenhamos.
Anestesia geral, entubação, três dias de CTI e mais uma semana de internação no hospital. É curioso pensar que, no mesmo período, algumas famílias podem ter ido, quem sabe, para a Disney. E elas se divertiram, eu imagino. Enquanto isso, eu sigo dormindo de barriga pra cima há três semanas e torço para que meu esterno calcifique bem.
Ainda assim, ao me deparar com a morte como uma possibilidade razoável, tentei fazer algumas reflexões. Como aquela música dos Titãs, “Epitáfio”. Você conhece. “Devia ter amado mais/ chorado mais/ ter visto o sol nascer”...
Eu juro que tentei ter esse tipo de sentimento antes de encarar a morte. Juro. Mas falhei, como esperado.
Ou venci, depende da perspectiva. O que sei é que esse tipo de arrependimento eu não levaria comigo. Seja lá o que fiz da minha vida até aqui – e certamente não foi nada robusto – estou satisfeito.
Cada um faz o que dá conta de fazer. Por que eu ficaria inventando de ver o sol nascer se o sono me deixa mal-humorado?
Chorar mais? Eu sou torcedor do São Paulo e moro em um país em que o Ministério da Educação consulta pastores antes de liberar verba para os municípios. Se eu for chorar por cada desgraça que me aparece, além de cardiopata, eu estaria desidratado.
“Amar mais”? Sério? Eu conheço o comportamento das pessoas no trânsito, nas reuniões de condomínio e nas redes sociais. Já vi gente furando a fila em missas. Na vida, a gente escolhe uma meia dúzia de pessoas para gostar – ama, com sorte, talvez metade delas – e já podemos nos considerar privilegiados.
No mais, é tomar cuidado com os folgados, sempre à espreita, e guardar distância dos cretinos. São os meus conselhos para a juventude.
Ainda que com um coração atordoado, por ora, sigo vivo. O que implica que esse teclado continuará a receber marteladas nervosas dos meus dedos esporadicamente. Uma alegria para mim, não vou mentir. Para a literatura é uma pena. Mas, enfim, não dá pra todo mundo sair ganhando.