COLUNAS
Quinta-feira,
2/6/2022
Sexo, cinema-verdade e Pasolini
Elisa Andrade Buzzo
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Senti-me levada em uma espécie de hipnose provocada pela personagem Graham Dalton (James Spader), em Sex, Lies, and Videotape (1989, dir. Steven Soderbergh). Seria algo em seu tom de voz macio e inseguro, tranquilo e envolvente? Um olhar fixo por alguns segundos e distraído convenientemente? Ou quem sabe isto teria a ver com um levíssimo rumor de um trem passando, que perpassa, inadvertidamente, as cenas de diálogos mais intensos como um farfalhar que induz ao retorno de uma calma alguma vez perdida? (Não um rumor alto e irritante de trem, desconcertante reflexo e intensificador da alma das personagens, como em alguns noir.) Tanto foi assim, que achei que estaria diante de algum tipo de vilão, como, no entanto, descobrimos uma personagem empática, preocupada. Mas repensando agora, Graham não “rouba” a mulher do amigo, e ainda oferece à amante dele um tipo de conexão que aquele nem imagina existir, nem pensa em oferecer?
O recurso da gravação em vídeo dos desejos sexuais e da forma como mulheres veem e lidam com o sexo acaba por ser não só uma forma de prazer, mas em principal um artifício em que se compreendem as situações, desmascaram-se os problemas (e mesmo os sexuais). A partir disso, e do diálogo e de capacidades apuradas de observação e escuta, a figura de Graham que entra em jogo causa uma espécie de revolução, e uma alteração, além de uma resolução justamente daquele que se confessa impotente. Apesar da relativa economia dos diálogos (aqui não se trata do fluxo constante de reflexão amorosa dos “contos” de Éric Rohmer, por exemplo), há essa importância do falar e, a partir daí, quem sabe iniciar a entender. Por exemplo, no início do longa há uma sessão com um analista, que irá se repetir; e mesmo, no caso do desentendimento, o jantar com o casal e Graham será uma cena de embate entre preocupação (do visitante, que traz morangos e elogia a comida) e agressão (do marido, que tem sua tese mesquinha sobre o sal na comida). Graham é um exemplo do que tanto se fala hoje em termos de “conexão emocional” (e os coaches de relacionamento teriam muito a aprender com ele).
Há algumas questões sexuais e de masculinidade que, em Sex, Lies, and Videotape, são mais sugeridas do que ditas abertamente. Isso é curioso, porque forma um equilíbrio com o explícito de outras cenas, e isto se dá com maior intensidade, como se não fosse nada importante, exatamente nas cenas inicial e final do longa-metragem. Na cena inicial, temos o solitário Graham que se encontra em um “mini road movie”, e ao se dirigir a um banheiro, o que faz? A barba. E barbear-se em cena é uma forma de exalar masculinidade (ou controlá-la?), desde os faroestes até os noirs. Por sua vez, na cena final, Graham já está em sintonia de casal com Ann, e o brevíssimo diálogo entre os dois gira em torno das condições metereológicas: vai chover; não, já está chovendo. E o carinho que Graham faz no braço de Ann terá o mesmo sinal de conexão mental e física da decidida e apaixonada Margot no indeciso e altamente volúvel Gaspard, no Conte d’été (1996), de Rohmer.
Enquanto temos a dupla formada por Graham e Ann, Cynthia e John formam o casal altamente sexual que sua muito em suas cenas, como me lembra a dupla neo-noir, em Body Heat (1982, dir. Lawrence Kasdan) - assolada por paixões que se confundem em ódio e desconfianças após um crime -, em dias de calor intenso, sendo este um elemento recorrente, de desconforto, que assola todo esse noir colorido e esfumaçado. Em algo como poderíamos chamar de masculinidade tóxica, e um universo de mentiras e um tipo de poder esnobe, John retoma seus velhos padrões ao final de Sex, Lies and Videotape, enquanto Cynthia, diante desse tipo de homem, parece entender que pode haver algo além a descobrir em sua feminilidade sexual hiperaberta e milênios à frente. Aliás, estes dois últimos casais, de filmes distintos (Cynthia e John; e Ned e Matty), parecem descobrir após as noites e os dias escaldantes que nada havia lá de fato de substancial, a não ser um enaltecimento dos sentidos a tal intensidade (e um jogo pesado de interesses) que nada mais do que a desaceleração até o desaparecimento disso restava, seja por quais motivos fossem. Mas, falando de sexo, o tema que se ressalta nesses filmes todos - a vida sexual das quatro personagens: no final das contas, é péssima, seja fazendo muito, seja não fazendo sexo.
E falando de sexo, de diálogo e de estar à frente, lembro do cinema-verdade de Pier Paolo Pasolini, em Comizi d’amore (1964). Vejo assombrada como, com tal segurança, elegância, generosidade, perspicácia e honestidade, ele conduz as entrevistas cujo tema, além do sexo, perpassa o divórcio, a prostituição, a homossexualidade. Temas, aliás, muito sérios em seus desdobramentos e que, mesmo assim, e sendo colocada uma clareza de pensamento em sua abordagem, aparecem no documentário com um lado bem-humorado que me remete à sua posterior “trilogia da vida”. E não haveria em Decameron (1971), I racconti di Canterbury (1972), Il fiore delle Mille e una notte (1974), um diálogo encadeado, como uma corrente, em que a fala, o desejo e o prazer são fundamentais ao homem, mesmo que problemáticos?
Elisa Andrade Buzzo
Lisboa,
2/6/2022
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