COLUNAS
Terça-feira,
26/3/2002
Comer é viver
Vera Moreira
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Hoje todo mundo já sabe que comida tem relação com cultura, educação e civilidade. O alimento passou a freqüentar rodas intelectuais, virou objeto de pesquisa, matéria-prima para exercício da criatividade, estrela de mesas abastadas. Evoluiu o comportamento, mas a essência ainda é a mesma: o homem se alimenta por amor a vida e toda a sua relação com a comida advém desta verdade, quando perde o interesse é porque a vida vai muito mal.
Já me aconteceu de perder dois quilos em três dias, por pura tristeza: apaixonada, levei um chega pra lá do meu namorado hoje... não desisto fácil, deu pra perceber? Quando morava em São Paulo, uma vez perdi quatro quilos, por preocupação, dívidas, pressão de trabalho, essas coisas comuns dos tempos modernos. Na época não elaborei, mas no final do ano passado tive a perfeita noção de que se alimentar é um ato de vida. Quando você se sente profundamente triste ou demasiadamente preocupado, o alimento não desce. O contrário também é sintomático e, inclusive, afeta a maioria das pessoas: você se atraca a devorar compulsivamente o que encontrar pela frente, uma fantasia de compensação que na verdade significa se suicidar um pouco a cada momento. É tudo a mesma coisa, sua vida anda mal.
Ninguém, em plena consciência das suas faculdades mentais/existenciais deixa de comer porque quer ou se entope de salgadinhos, refrigerantes, bombons, doces, etc, também porque quer. Comer é comungar corpo e alma, é ter prazer na vida, respeito pela natureza, é ter sensibilidade. O "progresso" não contribuiu muito com a humanidade neste sentido. Com as grandes cidades e a moeda, as relações entre as pessoas foram se tornando cada vez mais competitivas, o afeto foi cedendo espaço ao poder e o mundo se tornou o grande palco de um teatro de falsas intenções. É cada vez mais difícil encontrar alguém que se arrisque a mostrar seus sentimentos. É cada vez mais difícil encontrar alguém que consiga realizar o seu trabalho independente da vaidade. Isso acabou gerando um sem fim de neuroses e a população foi perdendo o interesse pelo alimentar o corpo e a mente.
Adoro ficar pensando nas feiras da Idade Média, com as pessoas trocando alimentos e mercadorias, conversando sobre suas aldeias, o clima, as marés, a lua, as lavouras, os rebanhos, as pestes, a ameaça do inverno, a fartura do verão, o calor dos seus lares e a benção dos filhos. Mas então temo que estejamos chegando de fato ao fim dos tempos, as conversas rareiam, as pessoas se limitam a dar relatórios para os colegas no cafezinho com suspiros e pra família no jantar pizza com coca-cola. E vão ficando cada vez mais tristes e preocupadas.
Os franceses, que eram o povo símbolo da celebração da vida com a sua maravilhosa culinária, a última fronteira da resistência gastronômica, estão ficando obesos. A população que mantinha a forma pela riqueza da sua alimentação, está engordando com produtos industrializados e sedentarismo. A síndrome americana da batata chips x TV bateu às portas da França e 17% da população engordou muito nos últimos três anos. Nos EUA, 80% da população com idade acima de 25 anos está obesa. O fato se agrava nas classes menos favorecidas, atingindo as crianças, sendo comum pesarem mais de 100 quilos. Da facilidade burra dos sacos de alimentos e o vício do lixo televisivo ao medo da violência das ruas e à falta de perspectiva quanto ao futuro, o homem sucumbe ao seu próprio arbítrio. Nos países pobres, as guerras, a opressão e a ganância matam de fome as populações e escancaram ao homem a sua doença mental.
No entanto, se conseguirmos resgatar nossas raízes, fazer agora o caminho inverso, as coisas podem melhorar. Como a vida é cíclica, nada é impossível. Se a industrialização foi um passo importante, difundindo tecnologia de produção, permitindo a conservação de perecíveis em larga escala, multiplicando o alimento e ultrapassando fronteiras de miséria, o caminho de volta pode não ser uma utopia.
Há duas semanas estive em San Francisco, assisti a uma palestra sobre tendências do varejo alimentar nos EUA e adorei saber que o consumidor americano já fala bastante em comer melhor e mais racionalmente, que começou a se preocupar com a saúde. O palestrante disse que esta tendência ainda está mais na esfera das palavras, o americano fala muito sobre isto, mas sucumbe às porções gigantescas de comida que são a marca registrada do país - em 10 anos o tamanho de uma porção de fritas, por exemplo, quase triplicou nos EUA. Mas se espera para o futuro uma verdadeira mudança de hábitos. O consumo de carne vermelha já está diminuindo e aumenta o de carne branca (frango e peixe). A influência de grupos étnicos também está ajudando, com a diversidade da alimentação. E, por incrível que pareça, os atentados terroristas dão sua contribuição. A casa começou a ganhar novo glamour para a família insegura de viajar e preparar uma refeição é agora opção de lazer, ainda que hoje ainda apenas se monte a refeição com os alimentos pré-prontos comprados no supermercado. Mas a expectativa é de que o americano aprenda novamente a cozinhar e prepare a sua refeição em bases saudáveis. Se as pessoas já estão falando neste assunto, vão buscar conhecê-lo mais e, com certeza, acabarão por aplicar a informação adquirida. Este é o movimento natural, felizmente.
Aqui na minha pequena e bela Gramado isto acontece. A nossa população rural está crescendo: até 1990 diminuía a cada ano, mas o último censo do IBGE mostrou que a situação se inverteu e população urbana agora cresce menos aceleradamente. O que me encanta é justamente constatar que os colonos foram atrás de informação, entenderam as novas conquistas com o alimento. Temos uma Feira de Produtos Orgânicos aos sábados pela manhã, onde os colonos levam suas frutas e verduras cultivadas sob consciência ecológica, além de produtos sofisticados fabricados nas suas casas, como queijo bursin, iogurte natural, manteiga e sal com ervas aromáticas, pães e biscoitos integrais e também já começam a cultivar cogumelos shiitake e flores para buquês. Anualmente, temos a Festa do Colono - começa no próximo dia 5 de abril e vai até o dia 14 (se você puder, venha correndo, é uma festa lindíssima) - quando o centro da cidade se enfeita de palha de milho, abóboras e carros de boi, fornos de barro de onde saem cucas, pães e bolachas, um amplo salão ao ar livre com mesas coletivas onde se saboreiam refeições saudáveis e substanciosas. É um importante momento da cidade e o fluxo de turistas é grande, o que gera uma receita significativa do orçamento anual dos colonos.
Você conversa com esses colonos e sente que eles trabalham o alimento com prazer, respeitam e admiram a natureza, o produto que dela tiram. São pessoas guiadas pelo amor ao que fazem, que buscam a melhor forma de prover o corpo e a mente e proporcionam isso também aos outros. São pessoas que combinam a cultura com a essência do alimento e nos dão o exemplo de amor à vida. Assim, acho que ainda podemos ter esperança na humanidade.
Vera Moreira
Gramado,
26/3/2002
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